Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

O Mal irrompe como uma sociopatia viral

É viável pensar em degradação cívica como o Mal

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Tempos atrás, o historiador britânico Simon Montefiore revelava, num livro sobre Stálin, a sua inquietação com a "natureza do Mal", especificamente com os efeitos do poder absoluto sobre a consciência.
Colunistas e webinários vêm levantando essa questão, que é de natureza psicológica e moral, intrigados com a banalidade de sua presença nas redes sociais e no próprio modo de condução da coisa pública. A preocupação já se estende à oposição política: no encerramento da CPI, o senador Randolfe Rodrigues fez um alerta sobre a "produção do mal em larga escala".

É viável pensar em degradação cívica como o Mal. No "Leviatã", de Thomas Hobbes, o Estado é figurado como a Besta. A imagem espiritualista talvez soe estranha ao tempo de hoje, em que o racionalismo socioeconômico centraliza as explicações sobre o funcionamento social.

No entanto, é cada vez mais extenuante no dia a dia o peso da política de devastação, que a tudo contagia ao modo de um vírus moral. É como se o Mal fosse um vetor aproximativo entre a infecção física e a cidadania. Já se sintetizou: as pessoas estão "adoecendo de Brasil". Muito além da economia e da política, é tóxica a desqualificação permanente, em altas e baixas esferas, dos princípios da Verdade e do Bem.

Próprio do animal social é buscar uma verdade "comum", que é o Bem, ou o ponto de convergência das forças de equilíbrio da comunidade. Diferentemente da Besta, o sujeito humano é dotado da capacidade de decidir sobre o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso. Daí o princípio de que "em toda ação vige o empenho por um Bem" (Aristóteles). Essa é uma ponderação (ética) sobre a justiça, a lei e o bom governo como ações essenciais ao que é saudável na cidadania.

O Mal é também um princípio, surgido no mesmo movimento de determinação do Bem, como seu complemento negativo. Por isso, pôde ser representado no passado como o demônio. Hoje, ao modo de uma doença, é a fratura que se faz sentir como desalento coletivo e como abalo nas consciências afetadas pela instabilidade moral. Não é, portanto, a disfunção do sistema, mas uma potência originária, catastrófica, de impossível normalização social.

Esvaziada de representatividade e de cuidado ético com a vida social, a política não dá conta do fenômeno. Para além dos conhecidos binarismos, o Mal irrompe como sociopatia viral ou gozo com o desastre alheio. Está presente no fascínio por ofensa, violência e armas. É uma janela aberta para o vácuo democrático, o desequilíbrio dos extremos e o mal-estar das instituições. No sensório global, é a pura e simples percepção de proximidade da Besta.

Capa da primeira edição do 'Leviatã', de Thomas Hobbes
Capa da primeira edição do 'Leviatã', de Thomas Hobbes - Reprodução

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