Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Ferradura, modo de usar

Ao dizer que a ferradura dá sorte, o camponês aceita (mais do que crê) a voz da tradição

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A propósito da crença em ficções, vale contar que o físico alemão Werner Heisenberg, visitando o interior da Noruega na companhia do colega Niels Bohr, perguntou a um camponês se acreditava que a ferradura pregada na porta da sua casa traria sorte. A resposta: "Acreditar, não, mas ela está aí porque dá sorte".

Esta anedota de sábios pode ser um ponto de partida para entender como se leva a sério uma fabulação.

A questão tem pertinência em meio à onda de mentiras aparentemente "credíveis" no espaço público nacional.

Ninguém ignora que o fake nos discursos sociais induz órgãos oficiais e nichos de povo a ações perversas. Mas o problema não se limita à disseminação de inverdades, antes sinaliza para o fenômeno inquietante do acolhimento coletivo a mentiras. Como no caso da ferradura, não se trata de crença nem de opção por uma verdade, e sim de adesão emocional a uma voz. Isso ocorre inclusive nos níveis cultos da falsa "consciência esclarecida", onde se sabe o que acontece, mas se justificam, por cinismo intelectual, atos e votos.

Na prática se trata de determinar os limites da força "constatativa" das palavras. Esse termo é familiar a quem distingue uma frase do tipo "a Terra é redonda" de outra como "prometo fazer o que disse". A primeira é uma constatação, pode ser verificada. A segunda é "performativa", ou seja, é preciso confiar em quem falou para que tenha efeito. O discurso cotidiano pauta-se menos por medidas lógicas de verdade e mais pela confiança que se deposita no falante.

Ao dizer que a ferradura dá sorte, o camponês da historinha está aceitando (mais do que crendo) a voz de uma tradição. A força do sentido está no meio vital, no comum. Se o meio se desloca para o espaço urbano, o resultado é parecido. Para aderir, o indivíduo não precisa realmente acreditar num discurso, desde que haja força performativa. Por exemplo, status quo, etnocídio e privilégios de renda têm esse tipo de peso no extremismo conservador.

Existe outro lado, progressista ou humanista, em geral impedido de reconhecer os limites do discurso pela ilusão letrada de que o elevado nível constatativo de sua fala poderia esclarecer a consciência dos outros.

Não pode: a fala é só um trampolim. Não só para os velhos desencantados com palavras gastas mas também para os jovens empoderados pelas redes, a convicção tende a vir menos do foro íntimo e mais do exterior, da própria emoção do ato, igualada à crença. Há, porém, um grande risco: na atual democracia das emoções insensatas, pode revelar-se de extrema dificuldade a distinção entre uma ferradura votiva e a aberração humana disposta a calçá-la.

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