Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Tudo é game

Se tudo vira jogo de bilionários, periga acabarmos como o capitão Kirk, vendo só escuridão

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O capitão James Kirk voltou ao espaço. Na realidade, aos 90 anos de idade, o ator William Shatner, que há meio século interpretava o comandante da Enterprise em "Jornada nas Estrelas", cruzou pela primeira vez a linha divisória da atmosfera.

Tudo isso como cortesia do bilionário Jeff Bezos, que mandou a espaçonave a cem quilômetros da Terra com três outros turistas, pagantes. O custo é exorbitante, mataria a fome de milhares de pessoas.

Bezos, porém, é fã da série e, claro, da promessa do capitão Kirk de avançar numa imaginária fronteira final para "explorar mundos estranhos, buscar novas vidas". Nas telas, o voo tinha ritmo de eternidade. Na vida real, a ida e volta durou dez minutos, com frações de tempo lá fora. Mas foi o bastante para o ator: "Vi a escuridão".

Coisas assim acontecem num momento em que se torna patente a insólita proximidade entre o mundo do espetáculo e o real comum.

A imagem retrata, em primeiro plano fechado, a expressão do ator William Shatner durante entrevista ao voltar do espaço na viagem feita em 13 de outubro de 2021. Shatner é um homem branco, que veste um macacão azul e óculos escuros, com um boné na cabeça. Na fotografia tirada no Texas ele gesticula e aponta o dedo da mão direita para o céu
O ator William Shatner, ao voltar do espaço na viagem feita em 13 de outubro de 2021 - Mario Tama/Getty Images/AFP

Na Netflix, o desdobramento de um game catalisa as atenções mundiais para uma história em que endividados disputam um prêmio até a morte, sob os olhares de bilionários ocultos. Confronte-se o enredo com a vida real e não aparece nada de novo para quem já curte as emoções do capitalismo lotérico.

O passeio do americano é marketing do mix de astronáutica com entretenimento. Do lado russo, o cineasta Klim Shipenko passou 12 dias numa estação espacial, rodando um filme. Em sentido amplo, tudo é game. Algo bem diferente da corrida espacial em seus começos, quando duas potências mundiais disputavam promessas grandiosas em termos de benefícios humanos. John Glenn, o primeiro a orbitar, não tinha nada a ver com ócio turístico.

Para o grande público, sobrou o espetáculo do "metaverso", como se vem chamando a fusão entre games e existência, por enquanto apenas aposta tecnológica e sonho de marketing. Mas já deixa de ser mera hipótese acadêmica a vigência de uma forma paralela de vida, em que os fatores humanos são refeitos por plutocracia financeira e inteligência artificial.

Aos mais avisados, sobra a urgência de se ponderar sobre as perversões das grandes promessas.

Transferidas da órbita pública para a órbita privada da indústria e comércio, logo tornam evidente o jogo de indiferença às condições reais de vida na Terra.

Dinheiro esbanjado no espaço (ou entesourado em buracos negros fiscais) é uma ofensa à dignidade dos esfomeados em ascensão. Se tudo vira game de bilionários, periga acabarmos como o capitão Kirk, vendo só escuridão, mas aqui mesmo, no mundo tornado cada vez mais estranho por velhas formas de vida.

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