Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Descrição de chapéu

Doidice endêmica

O senso comum reconhece o insano pela negação contagiosa da realidade

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Existe uma manifesta preocupação quanto à possibilidade de que o país esteja doente. É hipótese inusitada, mas não estranha, por exemplo, à cultura judaica: a palavra "yessurim", designativa de dor física, aplica-se também a angústias e aflições coletivas.


No Brasil, encoberta pela gravidade da pandemia, haveria uma endemia aberrante, caracterizada em termos práticos como "insanidade". Não exatamente aquilo que os especialistas chamam de psicose, mas uma referência popular à ausência de racionalidade e senso crítico, ou à presença tácita de uma afeccção de grupo ao mesmo tempo mental e moral. São variadas as formas do fenômeno, mas a maioria conflui para o negacionismo.


O senso comum reconhece o insano pela negação contagiosa da realidade, como na lógica sem lógica dos comportamentos de manada. A Terra é indiscutivelmente esférica, mas alguém é capaz de arguir que é plana, e essa fala revela-se infecciosa, sem que o planeta deixe de girar todos os dias como uma bola ao redor do Sol.


A negação poderia ser interpretada como acidente de percurso numa contingência político-social anômala, mas é mesmo uma falha de caráter permanente que atravessa como traço virótico a história do Brasil. Nisso está desenhado o personagem Macunaíma, de Mário de Andrade.

MONTAGEM - Esquerda: Rio de Janeiro, 05/02/2022. Protesto pedindo justiça por Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, jovem congolês espancado e morto, na Barra da Tijuca, zona Oeste do Rio. Foto: Tércio Teixeira/Folhapress - Direito Superior: SAO PAULO, SP, 05.02.2022: COTIDIANO - PROTESTO - Movimentos de luta por direitos humanos e contra o racismo, como a Coalizão Negra por Direitos e a Frente Povo Sem Medo, fazem ato pedindo justiça no caso de Moïse Mugenyi Kabagambe, assassinado no Rio de Janeiro. O ato acontece na manhã deste sábado (05), na frente do MASP, na avenida Paulista. (Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress) ORG XMIT: 30891 - Direito Inferior: BRASILIA, DF, BRASIL, 05-02-2022, 12h00: Militantes do movimento negro fazem um ato na esplanada dos ministérios em protesto pela morte do congolês Moise Kabagambe, espancado até a morte num quiosque na Barra, no Rio de Janeiro. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER)


É fenômeno básico na questão racial, como marca da forma social escravista. Nega-se, por exemplo, que o Brasil já teve um presidente negro-pardo, como evidencia a história de vida de Nilo Peçanha (1867-1924), filho de um modesto padeiro (conhecido como Sebastião da Padaria) e de uma filha de agricultores, que às vezes o alimentavam, segundo suas próprias palavras, "a pão dormido e paçoca". O problema é que Nilo, embora abolicionista, recusava-se a ser identificado como não branco, negando por maquiagem a própria cor da pele.


Negar é atitude padrão das classes dirigentes. No Império, era possível ouvir um escravagista dizer que não possuía escravos. Hoje, nenhum racista se admite como tal. A longa história do negacionismo evidencia como marca duradoura do caráter das elites a fuga da responsabilidade social. E isso se reproduz como forma metódica de insanidade: na crise, o negacionismo vira política oficial de saúde e, no particular, um trivacinado pode negar, na cara de pau, a eficácia das vacinas.


"Gamers" semialfabetizados deliram, multidões se contaminam. A doidice avança como doença incurável de caráter. E com horizonte turvo, antecipado séculos atrás pelo Padre Antonio Vieira (1608-1697), o farol da língua, numa carta: "Se observa no Evangelho que, curando Cristo todos os gêneros de enfermidades e ressuscitando mortos, a nenhum doido sarou."

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