Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Demônios na goiabeira

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Desde a espantosa afirmação de uma ministra de que viu Jesus Cristo trepado numa goiabeira, a nação não tinha ouvido informação tão intrigante quanto a da primeira-dama, segundo a qual o Palácio do Planalto era antes povoado por demônios.

Até aí, o relato oscila entre o escopo sobre-humano das crenças e o das exaltações visionárias. É uma questão de afinidade privada. Torna-se pública quando ela vai mais além para garantir que o real chefe do governo é aquele já descido, não da cruz (símbolo da entrega sacrificial), e sim da goiabeira: o próprio Jesus.

A professora Eunice de Jesus Prudente, na leitura da Carta aos Brasileiros, na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco,
A professora Eunice de Jesus Prudente, na leitura da Carta aos Brasileiros, na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, - Simon Plestenjak - 11.ago.22/UOL

Notoriamente, entidades religiosas e articulistas detectaram aí um laivo de terrorismo religioso, por contrariar o pluralismo das crenças e o princípio de laicidade do Estado. Mas o fato ganha uma conotação particular quando confrontado a um pequeno episódio da celebração democrática nas Arcadas do Largo São Francisco: a professora Eunice de Jesus Prudente, uma das leitoras da Carta aos Brasileiros, com pulseira de búzios e blazer amarelo, emocionou a todos ao se descrever como mulher preta, zeladora de Oxum.

É que essa autodescrição não significa a exclusão religiosa de nenhuma alteridade, mas a reiteração étnico-política daquilo que caracteriza a nação, a sua radical diversidade humana. Este foi o grande diferencial dessa Carta. Ao se identificar a partir da matriz ancestral, a professora (de sobrenome tão sincrônico) sinalizou para o próprio corpo como o capital cultural que autentifica um comum de pertencimento e de fé. Apontou para uma forma heterogênea de vida nacional.

O gesto foi simbólico e publicamente educativo: essa forma antecede em mil anos o cristianismo e zela por princípios cosmológicos que o Ocidente classifica como divindades. Uma dessas, Nanã, antiquíssima, figura no panteão dos deuses gregos ao lado de Atena, negra. A antiguidade do culto afro em nada se choca com a sua flagrante pós-modernidade litúrgica, que não se arroga à verdade absoluta, prescinde de conversão, desconhece preconceito de gênero e respeita outras crenças. Isso se comprova desde as menores até as grandes comunidades dessa tradição. A afro-perspectiva é uma restauração mental.

Daí o chocante retrocesso das falas planaltinas. É possível que a dama leve a sério a coorte que a vê como Ester, a exilada judia do Velho Testamento, feita rainha ao se casar com Xerxes, rei da Pérsia. Seu empenho era salvar a vida dos fiéis de Jeová. No momento, o que aqui periga é a sanidade dos fiéis à democracia. Mas a suposta rainha e seu consorte parecem querer jogar mais lenha de pau de goiaba na fogueira da demência, evento cuja única perspectiva é a da autocombustão mental.

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