Falta de diálogo em eleição polarizada é ruim para a democracia, diz antropólogo

Para Benjamin Junge, definição de novo presidente não deve superar divisões abertas por disputas dos últimos anos

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São Paulo | Interesse Nacional

Apesar de a população brasileira tradicionalmente se identificar como uma sociedade pacífica e harmônica, episódios de violência política têm se mostrado cada vez mais frequentes durante a campanha presidencial de 2022.

Para o antropólogo americano Benjamin Junge, a radicalização política que se vê no país é um reflexo da falta de diálogo entre pessoas com pontos de vista diferentes, o que pode se tornar um problema duradouro para a democracia do país.

Manifestantes pró e contra o impeachment de DIlma Rousseff lotaram esplanada dos ministérios em 2016, durante a votação dos deputados na Câmara, em Brasília - Diego Padgurschi - 17.abr.16/Folhapress

"Em uma democracia funcional e saudável, o momento de votar deveria ser precedido de pensamento, de diálogo, de informação —e tudo isso fica comprometido nesse momento", diz, em entrevista a Interesse Nacional.

Junge é um dos organizadores de "Democracia Precária: Etnografias de esperança, desespero e resistência no Brasil". A obra examina como brasileiros comuns viveram e entenderam as mudanças drásticas pelas quais o país passou entre 2013 e 2019. Parte dessa avaliação passa pela discussão a respeito da visão que essa população tem sobre a política do país.

Seu trabalho analisa como essas divisões políticas criam problemas até mesmo dentro de famílias de classes populares brasileiras. Segundo ele, a sociedade sempre teve contradições e tendências autoritárias e hierárquicas, mas isso foi exacerbado e legitimado pelo discurso de Jair Bolsonaro (PL) nos últimos quatro anos.

Seu livro menciona como a tradição política brasileira costumava levar a discussões, mas não à violência. Agora estamos vendo aumento de casos de violência política no país. Acha que há uma mudança na forma como as pessoas estão se comportando por causa da política no Brasil? É um fato empírico que a violência homofóbica, de gênero, de raça no Brasil tem aumentado desde 2018. E há mais na situação do que isso, pois havia violência homofóbica e baseada em raça e gênero antes disso.

A questão é que não era tão visível e não havia um discurso público que a legitimasse. Esse é um dos muitos legados terríveis de Bolsonaro. Ele não tem toda a culpa, pois isso já existia em formas menos desenvolvidas antes de 2018. Mas tentou legitimar isso intencionalmente, com um discurso duro e autoritário que vem de cima na sociedade. Esse discurso foi abraçado e internalizado por muitas pessoas comuns, gerando conflitos até mesmo em grupos familiares.

E agora o Brasil chega às eleições com uma sociedade mais genuinamente polarizada. Parte dessa polarização já existia antes, como na eleição de 2018, mas se intensificou ainda mais na maneira como os brasileiros de ambos os lados do continuum ideológico articulam suas preocupações, frustrações e esperanças. Isso se concentra especialmente em dois temas —segurança e corrupção. O curioso é que os dois lados em disputa concordam que esses pontos são problemáticos, mas adotam posturas muito diferentes em relação a eles.

Como esse contexto pode impactar nas relações sociais e políticas? Isso já é um problema político no país. A ideia de que o conservadorismo é um fenômeno novo no Brasil não faz muito sentido. Trata-se da continuidade de uma cultura autoritária que habita a sociedade. O Brasil é uma sociedade profundamente autoritária e hierárquica. Agora, a questão da violência é diferente, pois as pessoas podem ser intolerantes sem necessariamente atacar e matar o outro. E isso vem crescendo, mesmo que os brasileiros continuem se identificando como pacifistas em uma sociedade harmônica.

As redes sociais tiveram uma força muito negativa no discurso democrático. As pessoas publicam seus pontos de vista, mas não há mais diálogo. E a pandemia acelerou isso. Esse contexto reduziu as discussões até mesmo nas famílias, e elas são importantes para a democracia.

Há um tipo particular de ressentimento, desencanto, ceticismo que toma conta da mente das pessoas quando elas experimentam uma vida melhor e então perdem isso. O foco da minha pesquisa são as classes populares, que experimentaram algum tipo de mobilidade ascendente na primeira década do século 20, mas que, como todo mundo, na segunda década, ficaram em estado de precariedade.

Tento entender o sentimento político dessa população. Esse grupo nunca desenvolveu um sentimento mais elaborado sobre política, ou de solidariedade.

Muito do que houve foi uma visão muito consumista de redução da pobreza. E a esquerda pagou o preço por isso, porque muitas dessas pessoas que se beneficiaram de políticas do PT se voltaram contra ela quando sua situação foi precarizada. E a maneira como essas pessoas passaram a lidar com isso foi em parte através de discussões morais sobre gênero, sexualidade e religião ao longo de linhas geracionais. É um sentimento profundamente ambivalente.

Como acha que essa situação vai ficar após as eleições? O que estamos vendo é o encerramento do diálogo, que é ruim para a democracia. Em uma democracia funcional e saudável, o momento de votar deveria ser precedido de pensamento, diálogo, informação —e tudo isso fica comprometido nesse momento, quando as famílias não conversam entre si.

O primeiro passo já está contaminado. Se você for para fora da família, é ainda mais difícil de conseguir esse diálogo e fazer pessoas conversarem com outras que discordam delas. A posição de muitos dos eleitores de Bolsonaro reflete uma espécie de frustração ou certa dificuldade em abraçar uma sociedade multicultural.

Essa é a grande questão que o Brasil vai ter que resolver. Ele vai ser a sociedade igualitária prevista na Constituição de 1988? Isso não se reflete na realidade. É um desafio criar uma sociedade multicultural. Não estou otimista em relação à situação do país após as eleições. Aconteça o que acontecer, a eleição não vai aproximar as famílias que têm tensões ideológicas. Isso é ruim, e qualquer que seja o resultado das eleições de outubro, não vai se resolver esse problema.

Um ponto interessante é que seu trabalho lida muito com a ideia de "família", e esse é um assunto que está no centro do discurso de apoio a Bolsonaro. Como vê esse processo e o lugar da ideia de família na sociedade brasileira? Para os apoiadores de Bolsonaro, os últimos quatro anos foram uma chance de restaurar uma velha visão do patriarcado em que o papel do homem na sociedade é prover para sua família, cuidar dela e protegê-la. Trata-se de uma velha noção do papel do homem na sociedade, que se tornou mais forte entre os apoiadores de Bolsonaro e vai persistir mesmo que Lula ganhe.

O problema é que em muitas dessas famílias há pessoas, especialmente mais jovens, que não têm essa visão de mundo e não querem ser protegidas, cuidadas, mulheres que não querem ser tratadas como cidadãs de menor importância. Então a questão geracional é fundamental. Jovens que cresceram nos anos de progresso, não conheceram a ditadura e conheceram um período de crescimento e um otimismo, com abraço de uma sociedade multicultural, com visibilidade racial. Isso não vai mudar após as eleições.

Essa é uma questão em disputa em torno do conceito de patriotismo, como se o Brasil fosse um país homogêneo. Os brasileiros têm uma capacidade incrível de carregar contradições, de comemorar e se divertir mesmo com diferenças ideológicas e políticas. É bom que as pessoas de alguma forma ainda possam se dar bem umas com as outras, mesmo que discordem fortemente. Por outro lado, é problemático agir como se tudo estivesse bem quando, na verdade, há problemas e divisões reais, especialmente ao longo de linhas geracionais, que devem ser discutidas.

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