Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

A mão que não se estende

Religião é disfarce para que a moralidade privada se torne matéria de Estado e de opressão

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Quase dois meses após a posse presidencial, permanece aceso o instante em que Janja, durante os cumprimentos diplomáticos, se afastou de Lula para evitar o aperto de mão dos iranianos. Aliás, uma nota da embaixada do Irã reaviva o episódio, dizendo que eles mesmos haviam pedido ao cerimonial para contornar a saudação às damas.

Se real, a nota é um pioramento da atitude poluta dos que fazem cortesia diplomática ser a ruína do que foi ou, como se diria no tempo do Barão do Rio Branco, passar de porqueiro a porco. A viravolta poderia permanecer como bizarrice, mas se trata mesmo de dissonância de segunda mão, primordialmente política. É que os descorteses são paus-mandados dos mulás, líderes religiosos que controlam um aparelho de Estado regido pelo ódio à condição feminina.

O presidente Lula com a primeira-dama Janja, durante cerimônia de posse de Aloísio Mercadante para a presidência do BNDES, no Teatro do BNDES, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 6.fev.23/Folhapress


Nenhum exagero nesta afirmação, quando se considera a perspectiva do politólogo alemão Carl Schmitt, para quem a política não tem substância própria, seria um fenômeno relacional, fundado na distinção entre amigo e inimigo. Uma diferença sujeita a práticas odientas, apesar da eventual convergência de determinados propósitos.

Schmitt é ícone intelectual do pensamento de direita. A sua visão ressoa no caso das ditaduras islâmicas, em que a contraposição homem/mulher é tão radical em termos ontológico-existenciais que funda uma política própria, pois ali a dicotomia de gênero equivale à de amigo/inimigo. Religião é disfarce para que a moralidade privada se torne matéria de Estado e de opressão. Mata-se uma mulher por fios de cabelo soltos.

O fenômeno agrava-se em regiões como o Afeganistão, onde jovens ou idosas, soterradas por burcas, não andam nas ruas sem escolta masculina, não podem estudar, trabalhar, nem frequentar consultórios médicos. Também não podem cantar. Curiosamente, essa é a versão troglodita da companheira virtual no ultracivilizado aplicativo de inteligência artificial, que não sente, não pensa e não vê.

No grau zero da feminidade, o amor evaporou-se como chuva no deserto: mantém-se, claro, a urgência reprodutiva com as injunções do estupro caseiro. Mas o ódio como substrato das relações evidencia-se politicamente na máquina estatal-patriarcal de apagamento da mulher no espaço islâmico.

Nos termos de Schmitt, a fricção violenta da dicotomia é propriamente bélica. Daí a guerra das iranianas contra a misoginia dos mulás. Sem armas: o que não impede assassinatos, prisões e enforcamentos. Assim, o drible de Janja na fraca-gente diplomática foi metáfora de mão estendida às guerreiras do Irã. Não é mão que mate carpas para catar moedas em laguinho. É mão de outra estirpe humana em Brasília.

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