Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Um olhar a mais

O grotesco televisivo nada escondia, já franca-tripas e prima-donas de agora servem de tapa-olho a tenebrosas transações, civis e militares

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"Quando for a hora certa, eu o Senhor farei acontecer." O versículo (Isaías 60:22), recém-invocado como guia pela ex-primeira-dama e autodeclarada aspirante à Presidência da República, deixa em suspenso o sentido de "acontecimento". Mas, em performance recente, pede à acompanhante, deputada federal, que retire sua prótese ocular. Aquiescente, a outra leva a mão ao rosto e entrega um olho de vidro, que a aspirante se apresta a guardar, como uma joia, no bolso do jeans. Então garante à plateia: "Esta é uma mulher que faz acontecer".

Na charge a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro segura uma prótese ocular em frente ao seu rosto.
Charge de Triscila Oliveira e Leandro Assis publicada na página A2 do jornal Folha de S.Paulo em 19 de julho de 2023 mostra a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro segurando prótese ocular da deputada Amália Barros, que participou de evento do PL Mulher. Na ocasião, Michelle chamou a deputada para discursar e pediu que ela tirasse a prótese - Triscila Oliveira e Leandro Assis/Folhapress

Meio século atrás, no programa "A Hora da Buzina", de Chacrinha, "acontecia" quem inserisse primeiro no nariz um carretel de linha. O pano de fundo popularesco permitiu à emergente indústria da televisão granjear uma audiência de migrantes de primeira e segunda gerações nas periferias urbanas do Sul. Podia-se receber como prêmio um quilo de bacalhau ou um eletrodoméstico.

No palanque evangélico, a obtusidade ficou à demanda de um sentido. Exceto a garantia: fazer acontecer. À primeira vista, nada. Mas a mente aberta divisa uma lógica por trás desse tipo de ação, que tem tanto a ver com o cardápio de linguagem da extrema direita quanto com a semiose do espetáculo grotesco. "Acontecer" frente às câmeras de tevê era arranhar a superfície dos bons modos por meio de encenações que incitavam à hilaridade e excediam quase sempre as convenções do bom gosto.

Essa estética do rebaixamento, incipiente estratégia comunicacional da televisão, conheceu o auge no programa do Chacrinha e em correlatos de menor talento. Mas funciona hoje também como lógica de contato da ultradireita com seguidores. Primeiro, com pretensa simplicidade pessoal: humildade de exibir deficiências, ignorância subindo à cabeça, clichês cristológicos. Segundo, em vez de alegria, ódio ativado por algoritmos.

Nessa lógica, dispor de apenas um olho não seria contingência, mas a essência de alguém. Escondendo a prótese, sem devolvê-la, a dama estaria comunicando algo essencial de uma identidade supostamente desinformada aos olhos da audiência. Teria feito "acontecer" uma verdade. Acompanhada de outra acólita, poderia pedir que narrasse a subida de Cristo na goiabeira. Ou, pulando, falaria em línguas com ministro terrivelmente evangélico.

Tudo adequado à fórmula originária. A diferença é que o grotesco televisivo nada escondia, era mera bufonaria à vista. Já os franca-tripas e as prima-donas de agora servem de tapa-olho a tenebrosas transações, civis e militares. Reluzem ouro e diamantes. Chacrinha buzinaria: "Roda!" Mas já existe convocação policial em curso. Por isso, na sabença ácida das massas, circula o leonino "acontece sempre de manhã cedo (Federais, 171:0)".

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