Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré
Descrição de chapéu aborto

Na gaiola patriarcal, as mulheres são culturalmente anuladas

A manutenção do patriarcado está na raiz da feroz política de Estado antifeminista

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"Homens sem mulheres, uma piada cruel", esta frase de história passada num campo de prisioneiros aliados na Segunda Guerra pode ser interpretada como machista. Seria mera queixa de carência sexual. No texto, porém, soa como aguda reflexão sobre a condição masculina entregue a si mesma, sem a alteridade feminina.

A democracia liberal e a vulgarização da psicanálise habituaram a consciência moderna a apostar na diferença genital como marca exclusiva de uma ética da alteridade sexual. No entanto, "há situações em que a diferença não é a priori recusa de similaridade" (Achile Mbembe em "La Domination Universelle"). Quer dizer, é preciso buscar além da genitalidade pontos comuns entre os sexos.

Esses pontos são recusados pelo patriarcalismo, dominação libidinal do corpo do outro (a mulher, o escravo), reduzindo-o à relação genital. Sabe-se que os escravistas islâmicos davam nomes femininos (Jasmine e outros) a seus escravos para melhor domínio dos corpos submetidos. Não existe colonialismo nem escravismo sem submissão corporal aos colonizadores. Vale residualmente para as esposas do período colonial, as sinhás.

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Médica e paciente dão as mãos durante aborto em Rosário, na Argentina, onde o procedimento é permitido - Virginia Benedetto - 8.jun.24/Folhapress

Donde outro sentido para "homens sem mulheres". Na gaiola patriarcal elas são culturalmente anuladas, pois o feminino é princípio simbólico maior do que a reprodução. A comparação materialista da mulher ao operário por produzir humanidade ainda é uma redução cruel. A percepção disso nas lutas feministas intensifica-se com o sentimento de que a maternidade persiste como situação neocolonial, isto é, dentro de uma velha constelação masculina de poder.

Isso não acontece sem violência. A manutenção do patriarcado está na raiz da feroz política de Estado antifeminista. No Afeganistão, o Talibã apagou a figura da mulher na cena pública. Nas ditaduras petrolíferas, uma fálica arquitetura erige-se à sombra de tenebrosa opressão feminina. No Irã, velhos enforcam jovens por cabelos à mostra. O machismo, paixão moral pelo duplo anatômico de si mesmo, evidencia temor mítico e ódio ao feminino. Mas também expõe a conexão profunda do patriarcado com o racismo, na medida em que a diferença sexual termina concebendo mulher como raça além da masculina.

Só que nada impede as mutações orgânicas do sexo e do gênero, cujo horizonte é a autonomia corporal. Essa é a meta política de uma frente inovadora de luta, em que mudar o mundo implica reumanizar-se, mudar a si mesmo. Isso já transparece na reação social à leniência para com estupradores. Na memória coletiva ainda ressoa a permissão abjeta de um governador: "Estupra, mas não mata!" Entre nós, um sórdido projeto de lei antiaborto, leia-se defesa do estupro, retornou à cloaca. Espera-se que seus autores tenham o mesmo destino.

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