Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Jovens, negros e da periferia, entregadores ciclistas por aplicativo enfrentam a barbárie da modernidade

É necessário dar garantias trabalhistas básicas ao entregador, como seguro para o caso de impedimento temporário de trabalhar

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Entregador de produtos por aplicativo, Thiago de Jesus tornou-se um exemplo da “tão desejada” modernização das relações de trabalho e da redução do Estado. Ao chegar ao seu destino, levando uma garrafa de vinho, caiu na calçada ao e pagou com a vida o preço dos novos tempos da economia flexível e digital.A empresa para quem prestava serviço como “microempreendedor”, uma multinacional que recebeu aporte de um bilhão de dólares em 2018, não acionou um resgate para atendê-lo, afinal essas são as regras. O cara trabalha quando pode e quando quer.

A jornada e a remuneração são flexíveis. Ninguém é obrigado a trabalhar, mas a empresa também não é responsável pelo que acontece com o entregador durante sua jornada. Cada um por si, Deus por todos.Acionada pelos clientes que viam o entregador morrer na calçada, o Samu, não apareceu. A gestão municipal, por economia, reduziu o serviço em 22%, com o fechamento de bases e realocação de equipes. Acionado, o motorista da Uber se recusou a leva-lo pois “sujaria” o carro. 

Só com a chegada de familiares, a solidariedade de velhos tempos, Thiago foi transportado ao hospital, mas não sobreviveu.O drama de Thiago, que deixou um filho pequeno sem qualquer pensão, deu visibilidade para o que está acontecendo nas cidades brasileiras. Motoqueiros ou ciclistas estão cada vez mais presentes nas ruas, com bags ilustradas com marcas que dominam esse mercado: Rappi, Ifood e Eat Uber.Trabalho flexível, sem garantias trabalhistas e previdenciárias, a atividade se encaixa no sonho neoliberal de desregulamentação das relações econômicas. Com 13 milhões de brasileiros desempregados —que antigamente era chamado de “exército industrial de reserva” (e agora, como são chamados?), a exploração selvagem cresce exponencialmente. 

Pesquisa inédita promovida pela Aliança Bike, em uma amostra realizada em seis regiões de São Paulo, revelou o perfil social dessa tragédia. Mostrou que, entre 2018 e 2019, o número de entregadores ciclistas por aplicativo multiplicou-se por 5,4.

O entregador ciclista típico mora nas periferias, é homem jovem (50% até 22 anos), negro ou pardo (71%), tem ensino médio completo (53%) e estava desempregado (59%). Agora trabalha os sete dias da semana (57%) e, em média, sua jornada diária é de 9,24 horas, para fazer nove entregas, com uma remuneração mensal de R$936,00.

A pedalada diária média para ganhar menos que o salário mínimo é 60 km, sendo 40 km para prestar o serviço e 20 km para ir e voltar da moradia até o centro expandido, onde se concentram as entregas. Poderia ganhar mais, mas perde muito tempo esperando as chamadas, devido ao excesso de oferta. A falta de segurança no transito (44%), falta de infraestrutura viária (34%) e falta de segurança contra roubo (20%), são as maiores queixas.

Em geral, não tem sequer um local de apoio com água, banheiro, energia e oficina. Esse drama trabalhista precisa ser enfrentado sem negar a importância urbana e ambiental da ciclologística, que deve ser apoiada, nem colocar em xeque o papel dos aplicativos, que liga os pontos, potencializando novas vivências cotidianas. 

A atividade tem impacto na sustentabilidade urbana. Caso as entregas do ciclista fossem feitas por motocicleta, emitiriam 2,75 Kg de CO2 por dia. Isso significa que cada ciclista entregador deixa de emitir uma tonelada de CO2 por ano, uma compensação de oito árvores. Pode parecer pouco frente ao desmatamento da Amazônia, que hoje é feito no atacado e estimulado pelo governo federal, mas é uma contribuição não desprezível. 

A ausência de qualquer organização possa lutar por seus direitos, como os velhos sindicatos que conseguiram civilizar o trabalho industrial no século passado, após muitas lutas, dificulta a regulamentação dessa atividade. Mas o poder público não pode ficar inerte. 

É necessário dar garantias trabalhistas básicas para o entregador, como seguro para o caso de impedimento temporário de trabalhar. Caso contrário, a barbárie será crescente. E, por outro lado, é essencial a cidade se estruturar para a crescente utilização das bicicletas na logística, o que significa retomar a implantação da estrutura cicloviária, paralisada pela atual gestão municipal.

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