Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu jornalismo

Os almoços de sexta-feira com o Seu Frias são uma pequena parte da história dos 100 anos da Folha

Entre as duas centenas de editoriais que elaborei, defendemos a progressividade no IPTU, o combate a imóveis ociosos, a proteção ao meio ambiente e ao patrimônio cultural

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Quando entrei pela primeira vez no prédio da Folha na alameda Barão de Limeira, em 1985, me deparei, emocionado, com as imensas rotativas imprimindo o jornal detrás de uma parede de vidro, no hall de entrada. Nesse dia, que marcou o início da minha colaboração com esse jornal centenário, vieram à cabeça recordações perdidas no fundo da memória.

Na minha infância, para chegar até a mesa de trabalho do meu pai, no fundo do prédio onde ele tinha uma papelaria e uma gráfica, na região da 25 de Março, eu tinha que atravessar um corredor ladeado por máquinas enormes e barulhentas, que imprimiam sem parar folhas e folhas em árabe.

A Typographia Editora Árabe era a única em São Paulo que compunha com tipos em letras arábicas. Lá meu pai editava e imprimia o “Diário Syrio”, jornal destinado à colônia sírio-libanesa. Antes de ler um jornal, eu vivenciei cotidianamente sua impressão.

Na adolescência, criei o hábito de ler diariamente o O Estado de S. Paulo, que meu pai assinava. Ele discordava da linha editorial do Estadão, mas dizia que era o jornal que melhor informava. Reclamava, sobretudo, da maneira como era tratado o assunto que mais lhe interessava: os conflitos entre a Síria e Israel.

“Os Mesquitas (donos do grupo Estado) fazem o jogo dos “yahud” (judeus, em árabe) e dos americanos”, esbravejava. Para se informar, ele dizia que era necessário ler os editoriais para conhecer a posição do jornal e aí dar um desconto nas notícias.

Eu não gostava do Estadão, mas confesso que levei um tempo para trocar. Jornal diário é hábito. Só optei pela Folha quando era estudante da USP, atraído pela cobertura progressista que fazia do movimento estudantil. Não dava para não ler as reportagens da Irede Cardoso, onde os protagonistas éramos, os estudantes que faziam as passeatas e assembleias pelas liberdades democráticas em 1977.

Não deixei mais de ler a Folha, que soube acompanhar a primavera democrática que o país viveu nos anos seguintes e se renovar com o Projeto Folha e com um pluralismo que é sua marca registrada.

Participei de um pequeno pedaço dessa história. Se meu pai me ensinou o que era um editorial, foi no nono andar da Folha que entendi como o jornal definia a posição que iria defender nos editorais e aprendi a escrevê-los.

Nesse dia que fui pela primeira vez à Folha, o então editor de Opinião, Marcelo Coelho me convidou para colaborar nos editoriais de Cidades. A equipe de editorialistas era formada por jornalistas fixos e especialistas, como seria meu caso, que iam ao jornal apenas às sextas feiras para um almoço com o seu Frias [Octavio Frias de Oliveira], dono do jornal, e para escrever dois editoriais para o final de semana.

Frequentei esses almoços por quatro anos. Eles foram uma “pós-graduação” em política, onde aprendi a ouvir e entender visões diferentes das minhas, a falar só o necessário, a defender com argumentos e veemência meus pontos de vista e a pactuar soluções que pudessem contemplar posições diferentes.

Na longa mesa do almoço, Seu Frias ocupava o lugar central, com o Diretor de Redação, Otavio Frias Filho, à esquerda e o editor de Opinião, à direita, que trazia uma lista de temas a serem debatidos. À volta, mais de vinte jornalistas, entre editorialistas e editores, alguns experientes, como Boris Casoy e Clóvis Rossi, e vários mais novos, como alguns que tinham participado do movimento estudantil.

Às vezes, vinham convidados importantes: ministros, governadores, prefeitos, lideranças empresariais, candidatos. A mesa crescia em forma de T e o ambiente ficava mais formal, com a obrigatoriedade do uso da gravata. O primeiro em que participei foi com o ministro da Fazenda, Dilson Funaro, quando o Plano Cruzado foi lançado. Nesses almoços, pude conhecer e ouvir as principais figuras políticas do período da redemocratização e da Constituinte de 1988.

O cardápio era trivial: salada, arroz, feijão, carne e legumes. Sempre regado com uma taça de vinho tinto português. Invariavelmente, seu Frias começava com seus assuntos preferidos, economia e política. Ele conduzia o debate e queria ouvir a opinião da mesa.

Não foram poucas as vezes que me espantei vendo antigas lideranças estudantis de esquerda da USP defendendo posições conservadoras, não sei se por convicção ou para agradar o chefe. Fazia parte do jogo, mas seria injusto com seu Frias dizer que não havia espaço para o contraditório. Minha experiência mostrou que ele, com bons argumentos, podia mudar de opinião.

Política e economia eu não comentava. Reservava meus argumentos para os temas de Cidades, que ficavam para a hora da sobremesa e do cafezinho. Após opinar sobre a linha (progressista) que eu achava que o jornal devia seguir em determinado tema, seu Frias contra-argumentava e iniciávamos um diálogo que, às vezes, foi áspero.

Lembro-me da polêmica em torno dos corredores exclusivos de trólebus à esquerda na avenida 9 de Julho, em 1987. Havia uma forte campanha das empresas de ônibus e da mídia eletrônica contra a proposta, formulada pelo ex-prefeito Mário Covas e que o prefeito Jânio relutava em colocar em operação.

Eu defendia que o jornal apoiasse a proposta como estrutural para a melhoria do sistema de transporte coletivo, mas seu Frias era contra. Com o apoio do então editor de Cidades, Dácio Nitrini, não cedi. O tema foi e voltou em três almoços, sem consenso. Elaborei um longo texto, com dados e argumentos, e finalmente ele concordou. A partir daí, a Folha passou a apoiar os corredores de ônibus e nossas relações ficaram mais cordiais.

Entre as duas centenas de editoriais que elaborei, defendemos a progressividade no IPTU, o combate a imóveis ociosos, a proteção ao ambiente e ao patrimônio cultural, a ampliação de parques e da permeabilidade do solo para evitar enchentes e muitas outras posições avançadas que a Folha assumiu e que se tornaram referências no planejamento urbano.

Deixei a equipe de editorialistas em 1989, para integrar a equipe da prefeita Luiza Erundina (então no PT), mantendo a partir daí várias contribuições esporádicas com o jornal, até assumir essa coluna semanal nos últimos anos, onde posso me manifestar com liberdade.

O clima de uma redação em meados dos anos 1980 era vibrante e eletrizante. Podia ser esfumaçado pelo tabaco, estar na pré-história tecnológica, ser estressante, mas era profundamente humano e vivo. Aquela imagem das rotativas no hall, imprimindo o jornal que tinha acabado de ser fechado, dava um prazer enorme ao se deixar o edifício, no meio da noite.

Duas fileiras de cadeiras e mesas vazias, com computadores acesos; em primeiro plano, lê-se na divisória de acrílico "Núcleo de Cidades"
A Redação da Folha durante quarentena imposta pela pandemia do coronavirus - Eduardo Knapp/Folhapress

Tudo mudou. Na última vez que estive na Barão de Limeira, na pandemia, a Redação estava deserta, os computadores apagados, uma tristeza.

Mas a Folha centenária continua nas bancas, na casa dos assinantes e, ainda, nos celulares e computadores em qualquer lugar do mundo. Já decretaram várias vezes o fim dos jornais, mas hoje apostaria em mais 100 anos de Folha.

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