Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Coronavírus

Enquanto os ricos furam a fila da vacina, os distritos com maiores taxas de mortalidade não têm prioridade

Clínicas particulares, empresas, juízes, políticos e empresários querem o direito de levar vantagem

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A vergonhosa vacinação clandestina, com imunizantes adquiridos no mercado negro, de políticos e familiares, amigos e empregados dos proprietários de uma empresa de transporte de Belo Horizonte, é mais uma manifestação das inúmeras tentativas, bem ou mal sucedidas, da elite brasileira manter privilégios.

Esse caso veio a público por denúncias de vizinhos. Quantos outros, não descobertos, estão acontecendo pelo país? É o “salve-se quem puder”, da atual etapa da pandemia.

As diferentes modalidades de “furar a fila” nos critérios estabelecidos no Plano Nacional de Vacinação objetiva manter, uma vez mais, os privilégios de andar de cima nesse que é agora o maior desejo nacional (de quem não é negacionista): ser imunizado contra o coronavirus.

Clínicas particulares, empresas e planos de saúde, corporações profissionais, juízes, políticos, grandes empresários e gente graúda, rica e bem relacionada, querem que a vacinação siga a cartilha que rege, há cinco séculos, a ordem social brasileira: quem tem poder econômico e força política tem o direito de levar vantagem sobre os demais setores da sociedade.

Eles não compreendem nem aceitam a impessoalidade em políticas públicas, as regras isonômicas da saúde pública e os critérios técnicos na priorização da vacinação. A lógica do SUS, de saúde universal, que agora está na moda elogiar, é grego para a maior parte dessa gente.

Ela está acostumada a ser bem atendida na rede privada de saúde, a pagar escolas caras para seus filhos, a circular em carros particulares e a ter segurança privada no condomínio. E a obter regalias em serviços públicos, quando é inevitável utilizá-los, pagando propina ou fazendo tráfico de influência com autoridades.

No desespero da pandemia, raciocinam assim: “se tenho dinheiro, se posso pagar, se sou bem relacionado e se consigo ter acesso, legal ou ilegal, a vacinas, porque não posso passar na frente e ficar livre do risco de contrair o vírus?”

Esse outro vírus, o do privilégio, que eterniza nossa escandalosa desigualdade, está espalhado pelo país. Foram inúmeros os casos onde prefeitos, secretários, vereadores e seus familiares e amigos furaram a fila da vacinação como se fosse uma coisa normal. Alguns foram denunciados, mas a maioria ficou oculto.

Inúmeras corporações profissionais tentam obter prioridade na vacinação, sob as mais diversas alegações. Em dezembro, quando a Anvisa sequer havia autorizado qualquer imunizante, os tribunais superiores (Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho) solicitaram à Fiocruz uma reserva de vacinas para seus funcionários.

Empresas privadas tentaram criar um programa de vacinação paralelo ao SUS, proposta que chegou a ser apoiada pelo governo federal mas não vingou. A Lei aprovada pelo Congresso obrigou as entidades privadas a doarem ao SUS todas as doses que comprarem, até que os grupos prioritários sejam imunizados. Em seguida, deverão doar 50% para o SUS e utilizar o restante para sua clientela.

Mas essa lei está sendo questionada por um grupo de cem empresários, liderados por Carlos Wizard e Luciano Hang, bolsonaristas de carteirinha, que querem promover uma imunização paralela, antes dos grupos prioritários serem atendidos.

Nesse debate estão presentes duas visões de política de saúde: os que se baseiam na velha tradição patrimonialista, conceituada por Raimundo Faoro, esperando que a articulação entre o poder econômico e poder político prevaleça, e os que defendem políticas públicas baseada em critérios técnicos e no direito a isonomia entre os cidadãos.

Os critérios científicos para definir os grupos prioritários estão relacionados com o maior risco que cada grupo social tem de contrair o vírus. Por essa razão, o Plano Nacional de Vacinação estabeleceu que os primeiros a serem imunizados deveriam ser os idosos, trabalhadores da saúde, indígenas e quilombolas, processo em curso.

O que está em disputa, na sequência, é quem serão os próximos a entrar na fila. Já se estabeleceu uma disputa político-corporativa sobre isso. Vereadores paulistanos estão articulando a aprovação de um projeto de lei para priorizar funcionários municipais e trabalhadores das prestadoras de serviços públicos. Doria definiu que policiais e professores devem passar na frente, inclusive dos idosos.

Se o objetivo da vacinação for conter o atual quadro trágico da pandemia, reduzindo a circulação do vírus, o número de casos, de internações e de óbitos, deve se adotar critérios urbano-territoriais, priorizando os bairros ou distritos das cidades onde as taxas de mortalidade são as mais altas e onde vive a população mais vulnerável.

A desigualdade sócio-territorial na mortalidade por Covid 19 não deixa margem a dúvidas. Segundo os dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, a taxa de mortalidade nos distritos com grande vulnerabilidade urbana e social apresentam os mais altos índices, enquanto que os bairros da classe média e alta têm as menores taxas.

O líder é o Distrito de Lajeado, com 259 óbitos por 100 mil habitantes, 3,9 vezes maior do que no Jardim Paulista, onde a taxa ficou em 67 óbitos por 100 mil habitantes. Na sequência dos piores resultados vem Iguatemi, Jardim Helena e Guaianazes, todos no extremo leste e com mais de 247 óbitos por 100 mil habitantes, enquanto os melhores indicadores são de Alto de Pinheiros, Pinheiros e Moema, todos com menos de 80 óbitos por 100 mil habitantes.

Ressalte-se que a porcentagem de idosos nos distritos da periferia é muito inferior à verificada nos distritos do centro expandido, o que mostra que a vulnerabilidade social talvez seja um fator de risco mais relevante que a idade. Enquanto no Lajeado apenas 5% da população têm mais de 60 anos, no Jardim Paulista, o índice se eleva a 22%.

Isso significa que a vacinação por critério etário também acabou por priorizar as populações mais privilegiadas da cidade. Enquanto apenas 8,7 mil pessoas têm mais de 60 anos no Lajeado e estão sendo vacinadas nessa primeira etapa, no Jardim Paulista, esse número alcança 17,2 mil. A população total do Lajeado é mais do dobro do Jardim Paulista!

A desigualdade é gritante. Sem dúvida, os fatores urbanos, como habitação e saneamento precários e longas horas no transporte coletivo lotado, e econômicos, como necessidades de trabalhar para auferir alguma renda, influenciam fortemente esses taxas. Nada foi feito em um ano para melhorar essas questões.

Enquanto isso, os moradores dos bairros privilegiados podem se isolar em condições adequadas, trabalhar em homeoffice e muitos estão passando a quarentena em suas segundas casas, no campo, praia ou serra.

Por critério técnico, para conter o avanço da pandemia e salvar mais vidas, os moradores das áreas com maior taxas de mortalidade, onde vivem os mais pobres, devem ser priorizadas na 2ª etapa do plano de imunização. Mas será que os governos estão sensíveis a isso, ou irão reproduzir, uma vez, mais os tradicionais privilégios da sociedade brasileira?

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