Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

São Paulo precisa se adensar e, ao mesmo tempo, preservar suas vilas e lugares afetivos

O tradicional Bar Mercearia São Pedro, por exemplo, pode fechar

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O Bar Mercearia São Pedro vai fechar para dar lugar a mais um edifício na Vila Madalena.

A notícia, ainda não confirmada, estourou com uma bomba, chocou e entristeceu uma multidão de frequentadores e amantes de um lugar, misto de bar, armazém e recanto cultural, que faz parte do roteiro afetivo e de sociabilidade de São Paulo.

Ao mesmo tempo, nesta segunda-feira (23), por iniciativa dos moradores, o Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp) irá votar a resolução de tombamento que protege a Chácara das Jabuticabeiras.

Trata-se de um pequeno loteamento (60 mil metros quadrados), projetado por Prestes Maia e Taufik Camasmie há quase cem anos. É um daqueles recantos encantadores que a cidade não pode perder, com lotes pequenos, vielas curvas, estreitas e arborizadas, onde estão as nascentes e o leito canalizado do Córrego Guariba, que abastece o Lago do Ibirapuera.

O lugar ocupa o miolo de uma quadra no perímetro de adensamento da estação Ana Rosa do metrô e, sem a proteção, certamente seria verticalizado e a cidade perderia mais um lugar interessante e significativo da sua história.

Esses dois casos ilustram um aparente conflito entre a correta diretriz de criação de uma cidade mais compacta e adensada nos eixos de transporte coletivo de massa e a necessidade de preservar lugares que têm especial interesse urbano, cultural, ambiental e afetivo, essência e riqueza que uma metrópole como São Paulo ainda pode oferecer.

Adensar a cidade e proteger os lugares significativos para a memória, identidade e autoestima da cidade são, ambos, objetivos previstos no Plano Diretor Estratégico (PDE), que no artigo 23º, inciso II, estabelece que se deve “compatibilizar o adensamento com o respeito às características ambientais, geológicas-geotécnicas e os bens e áreas de valor histórico, cultural, paisagístico e religiosa”.

Garantir na prática essa compatibilização é um dos desafios do planejamento de São Paulo, que está sendo enfrentado na Chácara das Jabuticabeiras, graças a mobilização dos moradores. A resolução de tombamento, elaborada pela Secretaria de Cultura, protegerá o traçado e as características urbanísticas e paisagísticas no local e limitará a verticalização.

Alguns itens da resolução, no entanto, precisam ser revistos pelo Conpresp, pois poderão descaracterizar a ambiência do local: a permissão para o remembramento dos lotes pertencentes à Chácara com os do entorno, o não reconhecimento no mapeamento das nascentes e do córrego e a permissão para a construção de prédios, com subsolo, em um pequeno trecho da área onde estão as nascentes.

Não tem sentido deixar essas brechas abertas no tombamento. Sem trazer nenhum ganho significativo para a cidade, elas desconsideram outros dispositivos legais, o que pode levar a uma desnecessária judicialização.

Embora a Chácara, formalmente, não seja um vila residencial, as suas características são semelhantes a essa tipologia. A Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei 16.402/2016) estabelece no Artigo 64º, inciso II, que “os lotes pertencentes à vila não poderão ser remembrados a lotes que não pertençam à vila”. Já a demarcação das nascentes e do córrego é obrigatória de acordo com a legislação ambiental.

Os casos da Chácara de Jabuticabeiras e da Mercearia mostram a necessidade dos órgãos de planejamento urbano e da proteção ao patrimônio olharem, no âmbito de processos participativo, de maneira mais detalhada para o território, identificando áreas de interesse cultural, urbanístico e afetivo que merecem ser protegidas “antes do leite derramar”.

Estima-se que existam cerca de 800 vilas residenciais, conjuntos urbanos característicos da urbanização de São Paulo, que tem uma densidade populacional considerável (embora horizontais ocupam lotes pequenos) e são muito apreciados e procurados pela população. Muitas merecem ser protegidas pelo seu valor arquitetônico, urbano e afetivo.

No entanto, não estão protegidos pela legislação, salvo algumas poucas que foram tombadas. A prefeitura não dispõe sequer de um cadastro desses locais, que vem sendo objeto de cobiça do mercado imobiliário. Protegê-los não afeta de maneira relevante a produção imobiliária e a necessidade da cidade se adensar.

São Paulo dispõe de grandes glebas ociosas e subutilizadas que precisam ser ocupadas de maneira planejada para a absorver seu crescimento populacional, estimado em cerca de 300 mil unidades habitacionais para as novas famílias que se formarão na próxima década, além da necessidade de produzir moradia digna para os sem-teto e para desadensar os assentamentos precários, como favelas e cortiços.

Compactar e adensar a cidade é uma das estratégias para enfrentar a emergência climática, pois aproxima os usos urbanos, reduz os deslocamentos e a emissão de CO2 e, ao limitar a expansão horizontal, preserva as áreas de interesse ambiental, o cinturão verde e a zona rural.

Mas é necessário calibrar essa estratégia com as dimensões social, cultural, ambiental e afetiva que precisam ser observadas no planejamento urbano. O PDE tem com diretriz criar uma cidade compacta e estabeleceu eixos de adensamento, mas também criou instrumentos para proteger lugares como a Chácara das Jabuticabeiras e a Mercearia São Pedro.

No parágrafo 1º do artigo 76º do PDE, que trata das áreas de adensamento nos eixos de transporte de massa, a recomendação é explicita: ficam excluídos nos eixos: ...II – as Zonas Especiais de Preservação Ambiental (Zepam)... VI – as Zonas Especial de Preservação Cultural (Zepec). A Chácara das Jabuticabeiras já poderia estar protegida se tivesse sido gravada como Zepec ou se tivesse seu gabarito limitado na Lei de Uso e Ocupação do Solo.

Em relação à Mercearia, o PDE criou uma nova modalidade de Zepec, as Áreas de Proteção Cultural que são destinadas a preservar o uso de “imóveis de produção e fruição cultural ... assim como espaços com significado afetivo, simbólico e religioso para a comunidade, cuja proteção é necessária a manutenção da identidade e memória do município” (Artigo 63, inciso IV).

A legislação possibilita a preservação do uso desses espaços, ainda que o próprio imóvel ou seu entorno sofra transformação imobiliária. Infelizmente, esses instrumentos de proteção foram muito pouco utilizados pelo município.

Como Secretário Municipal de Cultura, regulamentei a Área de Proteção Cultural (Zepec-APC) em 2015. Mas o único espaço que foi enquadrado e protegido foi o Cine Belas Artes, em 2016. Nem a secretaria nem a sociedade civil indicou novos lugares para serem analisados e protegidos.

Depois, todos se assustam quando chega a notícia que a Mercearia vai fechar as portas ou que uma vila cheia de graça vai ser demolida....

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