Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nabil Bonduki

A batalha das estátuas e o abandono da Cinemateca

Fogo marca novo capítulo da guerra cultural brasileira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A semana foi marcada pelo fogo. Embora as queimadas na Amazônia continuem a bater recordes, o fogo pegou mesmo em São Paulo, na estátua do Borba Gato e em um galpão onde parte do acervo da Cinemateca estava guardado.

De origens totalmente diferentes, eles são episódios relacionados com a versão brasileira da guerra cultural que ganhou força no país após o empoderamento da extrema direita, a campanha de 2018 e a chegada de Bolsonaro ao governo.

O termo “guerra cultural” foi cunhado nos Estados Unidos, nos anos 1990, a partir de um deslocamento do debate público entre esquerda e direita da agenda econômica para pautas morais, culturais, identitárias e de costumes.

Para Esther Solano, professora da Unifesp e organizadora do livro “O Ódio Como Política: A reinvenção das direitas no Brasil”, a guerra cultural foi uma reação conservadora ao avanço dos movimentos feministas, antirracistas e de defesa dos direitos humanos no debate cultural, social e político.

O filósofo Eduardo Wolf define “guerra cultural” como uma tensão social e política na dimensão da cultura e no universo dos valores e símbolos, que emerge de maneira ampla e difusa na sociedade.

Essa tensão decorre da percepção pelos grupos majoritários ou dominantes de que as nações têm uma unidade e identidade que se traduzem em uma essência inalterável. Tudo o que divergir dessa visão essencialista é considerado uma ameaça radical, pois coloca em xeque a suposta identidade tradicional.

É o que ocorre em São Paulo, onde a história oficial do heroísmo dos bandeirantes está sendo contestada e contraposta pelo seu papel no genocídio indígena, colocando em xeque a própria identidade paulista, construída por sua elite.

Nesse contexto, como afirma Wolf, os que desafiam a visão tradicional tendem a ver sua missão em termos idênticos, só que com sinal trocado: a existência continuada da sociedade tradicional, com suas ortodoxias, é um inimigo intolerável, um impedimento à própria existência da cultura desafiante. A guerra cultural seria como uma “luta pela alma da nação”, em que cada lado só pode almejar o silêncio do outro.

No Brasil, a extrema direita, influenciada por Steve Bannon e Olavo de Carvalho, formulou a teoria de que a guerra cultural é a grande disputa a ser travada para “salvar” o país, pois entendem que a esquerda hegemonizou o circuito cultural desde a redemocratização e tira vantagem disso. Com a eleição de Bolsonaro, esse discurso chegou ao governo.

Para Solano, Bolsonaro é uma peça simbólica da guerra cultural. Na campanha, não apresentou propostas programáticas e se pautou por questões morais, privilegiando argumentos em defesa de Deus, da família e dos costumes.

Foi uma reação ao campo progressista, que nos governos FHC e, sobretudo, Lula e Dilma, adotaram pautas democráticas e identitárias, abertas à participação dos movimentos sociais, feministas, LGBT e negros, que ganharam terreno não só nas políticas públicas, mas na cultura, dos costumes e no cotidiano. As cotas raciais e a inclusão da história da África nos currículos escolares são exemplos.

Na guerra cultural bolsonarista ocorre uma reação do campo conservador, mas sem que ocorra um debate democrático e enfrentamento de ideias entre um conservador e um progressista. O outro não é visto como um interlocutor, mas um inimigo a ser aniquilado. É uma forma de negar o debate, ou se ausentar dele, com fez o presidente na campanha.

Não debatem aborto como política de saúde, mas como “pecado”. A questão LGBTQIA+ não é pensada como direito ou política pública, mas em termos morais, argumentando-se que o casamento gay vai contra a família tradicional cristã.

Como um “guerreiro cultural”, não é de se estranhar que o presidente queira destruir a política cultural do país, construída no período democrático, em diálogo que um setor que é ponta de lança dessas pautas execradas pelos conservadores.

Ao extinguir o Ministério da Cultura, desmontar as linhas de financiamento à cultura e abandonar a Cinemateca —uma das causas do incêndio que destruiu parte do seu acervo—, Bolsonaro cumpre um papel nada republicano nessa guerra cultural. Por essa razão, é urgente a Cinemateca ser transferida, mesmo que provisoriamente, para o estado ou o município de São Paulo, antes que todo o seu acervo se perca.

Não podendo (por enquanto) ser armada, essa guerra é feita de ataques simbólicos, como se vê nessa batalha das estátuas, dos nomes de ruas e das homenagens que está em curso no país há alguns anos.

Quem não se lembra na destruição da placa de Marielle promovida pelos apoiadores de Bolsonaro e Witzel, em êxtase, na campanha de 2018, muito antes dos ativistas queimarem pneus nos pés do Borba Gato? Ação que vem sendo repetida em inúmeros ataques à escadaria Marielle em São Paulo, como voltou a ocorrer nessa semana.

O debate sobre o que fazer com os monumentos e estátuas está fortemente polarizado. Mas não pode ser feito como se fosse uma batalha. A prefeitura precisa abrir uma consulta pública para ouvir a sociedade ao invés de se antecipar e restaurar o Borba Gato, mesmo que seja com recursos privados, com anunciou o prefeito. Ela estará entrando nessa batalha.

Guerra cultural não combina com democracia. Restaurar uma estátua polêmica como o Borba Gato nesse momento, significa a prefeitura tomar partido, postura que só interessa a quem defende maior polarização.

Cabe à Secretaria Municipal de Cultura organizar o debate através da Comissão de Gestão de Obras e Monumentos Artísticos em Espaços Públicos, órgão da sua estrutura que tem a atribuição de “orientar, analisar e aprovar, sob o ponto de vista técnico, artístico, histórico e cultural, a implantação, remoção, restauro e conservação de obras e monumentos artísticos” (decreto 41.853/2002).

Essa poderia ser a arena onde todos poderiam participar e contribuir para pactuar democraticamente o encaminhamento para esse complexo tema.

Mas um pré-requisito para que isso possa ocorrer é a libertação do Galo, motoboy preto sob suspeita de participar do ato contra o Borba Gato, cuja prisão preventiva é injustificável. Ele se apresentou espontaneamente, disse que sua motivação era abrir o debate sem ferir ninguém, tem endereço fixo e pode responder em liberdade.

Mantê-lo preso enquanto motoristas brancos que matam pedestres e ciclistas trafegando em carrões em alta velocidade são libertados após prestar depoimento apenas reforça a certeza de que a Justiça brasileira é discriminatória.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.