Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

São Paulo virou acampamento de sem-teto e a prefeitura não faz nada

Na Vila Sônia, 248 famílias foram despejadas de um terreno

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Na quinta-feira (2), acordamos com as imagens da Rede Globo mostrando 248 famílias sendo despejadas de um terreno de 27 mil m2 na Vila Sônia. Isso apesar do ministro do STF, Luís Roberto Barroso, ter prorrogado até 31 de março as regras que suspendem os despejos em todo o país.

Apareceram pessoas desesperadas dizendo não terem para onde ir. Crianças perambulando, desnorteadas. Mulheres chorando. Uma dizendo que "não desmataram, não fizeram bagunça, só queriam um lugar para morar". Homens carregando telhas, canos, restos dos barracos, antes de eles serem destruídos.

Do poder público, só a Policia Militar e a Guarda Civil Metropolitana, para dar "segurança" à violência do despejo.

Na Vila Sônia, em São Paulo, 248 famílias foram despejadas de terreno
Na Vila Sônia, em São Paulo, 248 famílias foram despejadas de terreno - Divulgação

Não apareceu nenhuma assistente social da prefeitura, como determina a lei, para acolher minimamente as famílias, as crianças, os idosos. Dos cerca de mil moradores, 37% são crianças e 5%, adolescentes. Em pelo menos 23 moradias havia pessoas idosas ou com deficiência. Uma senhora recém-transplantada teve que ser socorrida pelos próprios moradores.

É o Estado mínimo, né? Da Secretaria Municipal de Habitação, da Cohab, da subprefeitura do Butantã, ninguém apareceu, apesar da ordem de reintegração de posse da juíza Luciane Cristina Silva Tavares determinar que a reintegração deveria ser acompanhada do "abrigamento" das famílias pela Prefeitura.

O advogado dos moradores argumentava que o oficial de Justiça só podia cumprir a ordem de reintegração de posse de acordo a determinação do mandado da juíza, isto é, com o abrigamento das famílias. Como isso não estava sendo cumprido por omissão da prefeitura, o mandado tinha que ser recolhido e a ação adiada.

Fora da cena, viu-se o oficial de Justiça conversando, não com a juíza que poderia determinar a suspensão da ação, mas com o advogado da Juriti Investimentos Imobiliários, proprietária do terreno, há mais de dez anos desocupado. Em seguida, manda seguir com a reintegração.

Restos de móveis, eletrodomésticos, trouxas de roupas, utensílios de cozinha sendo carregados por pessoas em prantos para caminhões baú. Em seguida, retroescavadeiras entraram em ação, colocando no chão 248 barracos de madeira precários. Como dizia Adoniran: "Fomos pro meio da rua apreciar a demolição".

São ações e omissões como essas que explicam porque estamos tropeçando nas ruas com os sem-teto. Das 248 famílias que ficaram ao desabrigo na quinta, muitas se alojaram em casas de parentes em comunidades da região, todas já superadensadas. Mas dezenas ficaram acampadas em outras áreas e ruas do entorno.

Junto com a pandemia, vivemos uma epidemia de sem-teto vivendo nas ruas da cidade. Não é mais a tradicional população em situação de rua, homens com problemas de saúde, dependentes de álcool e drogas ou abandonados pela família e que perderam os vínculos sociais e econômicos.

Agora são famílias inteiras que já tiveram uma moradia, mas que não conseguem mais pagar aluguel. A cidade está tomada por barracas de lona, de papelão, de plástico preto, como nunca antes se viu, não só no centro e embaixo de viadutos, mas até mesmo em áreas nobres, como a avenida Paulista. Um rastro de vestígios de moradias também está espalhado pelas ruas: restos de colchões, sofás, travesseiros, aparelhos eletrônicos e até flores e brinquedos.

Desde o primeiro dia da pandemia, há 20 meses, sabia-se que os seus desdobramentos sociais e econômicos teriam graves consequências para os inquilinos. Sem renda para o mínimo, o pagamento do aluguel ficaria inviável e, se nada fosse feito, acabaria em despejo.

O que é incrível é o descaso com que esse problema foi e continua sendo tratado pelo poder público, nos três níveis de governo. Bolsonaro extinguiu a Faixa 1, voltado para a baixa renda, do antigo Programa Minha Casa Minha Vida (atual Casa Verde Amarela) e, ainda, vetou a lei aprovada pelo Congresso que suspendia os despejos. Foi o STF que acolheu a medida, desrespeitada pela Justiça paulista.

O governador Doria também vetou lei semelhante aprovada pela Assembleia e, ainda, extinguiu a CDHU, encarregada de implementar a política estadual de habitação social. O modelo das PPP de habitação, que adotou, privilegia uma produção de pequena escala, voltadas sobretudo para os setores com alguma capacidade de pagamento.

Já a prefeitura de São Paulo parece achar que não é um problema dela. Mas sua responsabilidade é tripla: deve evitar que reintegrações como a da Nova Conquista amplie ainda mais a legião dos sem-teto; precisa prover moradia para a população mais vulnerável; e deve cuidar dos espaços públicos da cidade, como calçadas e praças que, sobretudo nos bairros centrais, estão abandonados à própria sorte.

É urgente a gestão Ricardo Nunes apresentar um plano compatível com a grave dimensão do problema. Há mais de dois anos, foi anunciado o Programa Pode Entrar que, além de ser minúsculo, ainda não saiu do papel. A PPP municipal de habitação propõe uma esdrúxula remoção de moradores já instalados em terrenos municipais para ser executada e não está voltada, prioritariamente, para os setores de mais baixa renda.

Depois de 20 meses de pandemia, a prefeitura foi incapaz de formular uma estratégia para enfrentar o problema que está transformando a cidade em um cenário de país de quarto mundo. A questão exige um leque diversificado de programas, ações e soluções, onde o papel do poder público não pode ser secundarizado.

O argumento de que faltam recursos não procede. Além dos recursos orçamentários, o Fundurb tem cerca de R$ 1 bilhão em caixa e arrecadou nesse ano, até outubro, R$ 616 milhões. A arrecadação do Fundo de Saneamento, que é fundamentalmente utilizado pela Secretaria de Habitação, alcança mais de R$ 400 milhões por ano. A prefeitura recuperou sua capacidade de endividamento e a Câmara autorizou o executivo a tomar R$ 8 bilhões.

O que está faltando é vontade política e uma estratégia eficaz para equacionar o problema.

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