Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Não se pode ir comendo as coisas sem prestar atenção

Há que se ter referências para entender uma galinha assada com pimenta verde

Nina Horta

Não posso acreditar que meus três pés de pimenta-do-reino do sítio tenham morrido. No meio do silêncio geral, não dá para saber o que aconteceu. Falta d'água? Excesso? Velhice?

Ah, como davam seus pequenos cachos verdes, subindo como trepadeira nos pilares vizinhos à cozinha. Eram a primeira coisa que víamos, logo na chegada, junto do manjericão.

Pimenta-do-reino branca e preta
Pimenta-do-reino branca e preta - Eduardo Knapp/Folhapress

É, parece uma bobagem e tanto, mas ficamos chateados. Paraty tem um clima ótimo para elas, uma vez Silvio cobriu aqueles morros de pimenta vermelha, todos os pés entrecortados por mangueiras respingando água, mas depois de colher barris e barris, não deu certo. Briga entre os que cultivavam, ciúmes, nós aqui, a pimenta lá, nem cheguei a ver essa barricada toda.

Então eu me dava por satisfeita com a pimenta-do-reino, uma especiaria com a qual a gente já se acostumou, mas não temos nem espaço nem tempo para cantar as loas de uma planta tão fácil. Começava como pimenta verde, no seu pequeno cacho, avermelhava para amadurecer, corava, diria eu, secava como a pimenta-do-reino que compramos por aí e, se descascada, virava branca para os peixes. A sororoca recém-pescada, numa delicadeza, qual a pimenta que se adapta ao prato, assim, sem firulas?

Um amigo dos meus filhos, todos pequenos ainda, me deu uma receita infalível enquanto se construía a casa e ficávamos na casinha de farinha, com um fogão de uma boca só, na cozinha de lenha. Era pegar uma galinha, prepará-la, despejar sobre ela umas duas xícaras de maionese com pimenta verde e forno. Só. Receita trash. Ficava dourada, afinal, não era assim grande proeza, pois assava no azeite e na pimenta, mais umas gemas que ajudavam no dourar. Sabor imbatível.

E vamos e venhamos, não se pode ir comendo as coisas assim, sem referências, sem prestar atenção. Lendo história podia-se dizer que as pimentas-do-reino haviam ajudado a fazer brotar a Renascença, um porto em Veneza, de 1.096 a 1.291. Enriqueceram à custa dela, aqueles mecenas venezianos.

E pode ir andando para trás, a pimenta lá firme, na Idade Média, servindo para pagar impostos, aluguéis, fornecendo o dote das filhas casadoiras. E a comida da época, bem ruinzinha, lembrem-se, sem batatas, nem açúcar, nem chás, café, cacau, e as carnes tendo que ser preservadas, os bichos sacrificados em outubro e aguentando sem geladeira até o outro outubro. Camuflava-se com pimenta, dava-se sabor com pimenta e ainda por cima eram consideradas digestivas e afrodisíacas.

Pois não se riam da minha galinha brega, mas sim cheia de glórias e de histórias. Não era simplesmente um frango com quiabo, mas sim uma galinha renascentista, com seus tons dourados, seu sangue vermelho, cor de Papa, cor de guerras santas. Uma galinha Viagra também, não havia o que a pimenta não desse jeito. Há que se ter referências, só isso, para entender uma galinha assada com pimenta verde. Já Marco Polo a descreveu, na Índia, nas costas de Malabar.

E quando havia muita gente de férias, claro que não se assava uma galinha só, mas várias, que enfeitavam a mesa com a receita do Picchetti (era esse o nome do menino da receita, de origem italiana, sem dúvida, lá das margens do Vêneto). Faziam vista, amarradas sobre a mesa, pernas para cima, curanchim para baixo, cuspindo navegações de suas entranhas amarradas com barbante, fazendo esquecer o galinheiro mequetrefe, todo em bambu.

E não é para chorarmos a morte das pimenteiras? Sem contar as variações sobre o mesmo tema, os marrecos começando a cruzar as asas, tenros, macios, feitos na panela com suco de mexerica do Rio e pimentas verdes, até dourarem e ficarem com sabor de Marco Polo, ninguém adivinhava o peso que carregavam aqueles patinhos. Por isso digo aos cozinheiros sempre: referências, meus filhos, referências.

É uma questão também de nomear. Não cobram vida antes de terem nome. Piper nigrum, da Índia ou não, saborosas, enfatizando o sabor da comida. Ah, que saudade, iam bem na sopa, nas carnes, nos peixes e nos picles, enfim uma pimenta nobre, estrelada, coisas de rei, o infante Henrique e outros. Chão bom o de Paraty para que elas crescessem, com o calor e muita chuva. Imagine que li, sabe-se lá onde, que produzimos 10.000 toneladas de pimenta-do-reino por ano? Já deve ser muito mais a essa altura.

Imperdoável terem deixado morrer aquelas trepadeiras tão generosas e felizes, subindo troncos acima, adaptadas, diversificadas, primeiro verdes, depois um leve pink, secas e pretas e descascadas, brancas, orgânicas, esqueci de orgânicas, seriam também sustentáveis, modernas?

É parar de choramingar e comprar umas mudas novas, prenhes de história, nobres, orgulhosas, sexy, atrevidas, doces, quando queriam ser. Vão voltar, se Deus quiser.

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