Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Buraco na nossa comilança

Se curvar sobre o pouco que resta da comida escrava, do passado e do presente, faria bem

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Concordo que todos esses anos escrevendo sobre comida me deram uma grande deformação profissional e entendo que muita gente se irrite com um olhar que só enxerga a mesma coisa.

Foto de escravos feita por Christiano Jr. em 1865
Foto de escravos feita por Christiano Jr. em 1865 - Museu Histórico de Petrópolis/Acervo Christiano Jr

Ontem mesmo, uma "face-friend" se irritou porque eu me lembrei do ortolan, o pequeno pássaro que é comido inteiro, com vísceras e tudo, na França, e os comedores, por respeito e para não perderem nem um pouco da fragrância, metem guardanapos na cabeça, segurando os vapores, aproveitando a experiência na sua totalidade.

Mitterrand, no leito de morte, pediu a iguaria como última refeição. E o que posso eu fazer, senão dar conta desses acontecimentos? Além disso é bom lembrar que minha coluna é de comida e, logo, que é dela que devo falar, assim, por cima, com as palavras que cabem nos espaços que ganho.

Tenho uma curiosidade grande por comidas dos escravos. Acho que, se tivesse tempo, muita coisa seria esclarecida --não sobre a comida, mas sobre a história, através da comida tão parecida com a que comemos hoje, com seus angus e quiabos. Já raspamos o fundo da panela de Gilberto Freyre, de Cascudo, de Lilia Schwarcz, de Carlos Alberto Dória, mas é tão pouco se comparado ao que os americanos têm sobre a alimentação do Sul. Deve existir muita coisa, mas o tempo é que falta, o cronista bica aqui e bica ali e nunca se aprofunda em nada.

Tenho certeza que uma história comprida se soltaria das asas dos frangos, como se soltou dos frangos americanos que marcaram com livros sem fim o Sul, suas lutas, os brancos americanos, os escravos, sua cidadania, seus corpos, seus meios de vida e de sobrevivência. Comida é o corriqueiro, é o todo dia, é a chave. Com o paladar podemos reviver o passado com mais facilidade. E agora me parece tudo longe, quase perdido. Alguma coisa ainda há de restar e, cabe a vocês, tão ativistas conforme a moda, procurar.

E é uma história que se faz entender imediatamente e com força por tocar as “guts”, uma experiência sensual de gostos, de lembranças, de tempo e de lugar. Nada mais próprio aos sentidos do que a abundância da comida americana, das tradições, do paraíso do excesso até a falta dela na guerra civil, a luta entre privilégio e pobreza.

Um dos livros sobre o assunto afirma que na comida sulista, na mistura das populações étnicas e raciais, na política e na colonização, foi criada uma cozinha dinâmica e rica que se enrosca em cultura, arte, religião, política, música e assuntos que hoje se discutem à boca pequena, como feminismo e as vozes das mulheres, gênero, “empoderamento”. Está tudo lá dentro de um belo gumbo apimentado. Os detalhes, a morte dos porcos, a divisão da carne, as galinhas agarradas pelo pescoço, o milho descascado, as sementes guardadas, tudo está na teia do grande tecido do qual se faz história.

Os jovens nas faculdades fariam bem de se curvar sobre todo esse universo do qual pouco resta de comida escrava, de agricultura, exploração do trabalho, direitos civis, a história do passado e a do presente, autenticidade, sustentabilidade. O futuro todo à nossa frente para ser comido, provado, entendido. Não vamos perdê-lo, mas não custa um aceno para o passado, vai ficar feio esse buraco na nossa comilança.

Na próxima coluna conto umas coisas dos escravos do sul, americanos. Vocês vão gostar.

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