Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Vocabulário gastronômico enriquece com lufadas de perfume

Dênis Pagani transmite os cheiros por meio da linguagem, o que é sensacional

Dênis Pagani, que escreve e fala sobre perfumes - Mastrangelo Reino - 27.abr.2010/Folhapress

Estava numa conversinha entre amigos, no Face, gente de comida. Uma delas reclamou que não aguentava mais ler que aquela garfada ocasionara uma explosão de sabores na boca. Todos concordaram, afinal repetimos sempre nossos lugares-comuns, com tanta coisa para falar!

Lembrei-me na hora de um livro que li recomendado por um amigo inteligente que se chama "A Mente e a Memória", de um psicólogo russo, Luria.

Ele descreve a vida de um sujeito que não conseguia separar os sentidos. Era uma barafunda só. Se estava tomando um sorvete perto da estação de trem quando a locomotiva passava, ele sentia o gosto de cinzas e o barulho metálico e tinha de jogar fora o doce.

Escutava sons uniformes e finos e cores ásperas. Tons salgados e cheiros brilhantes, claros ou cortantes. Todos os sentidos funcionavam ao mesmo tempo, e não era possível deletar nada do que caísse ali.

E fiquei de olho parado, pensando. É verdade, o nosso vocabulário gastronômico é bastante sem graça e repetitivo. Vamos inventar um pouco? Fazer vívidas descrições com palavras novas? Vão cair de bullying sobre todos nós, mas não custa experimentar.

Tenho um amigo perfumista, ou melhor, um amigo que escreve e fala sobre perfumes, o Dênis Pagani, que consegue transmitir os cheiros por meio da linguagem. É sensacional. Pensem em como explicar um cheiro com palavras?

Não consigo ver as melhores indicações dele no site O Nariz, mas vocês, mais espertos, talvez consigam. Descrever cheiros com palavras não é sopa, mas o rapaz tem faro considerável ou é um excelente escritor, acho que os dois.

Mas resolvi que podemos tentar receitar, explicar sopas e assados como ele, o que vai ficar muito mais interessante e nem precisaremos de ilustrações nos nossos livros de culinária, tantas as analogias inteligentes que ele sabe fazer.

Exemplos: Cheiro de asfalto urbano./ Em brilho, faísca,/ patchuli lembra mofo, chocolate amargo com um aspecto canforado no começo/ verde se diz da nota ou acorde de folha amassada, grama cortada/sensação macia e confortável, cheiro de lavanderia. Cheiro de limpo sem cair no sabonete/um guincho metálico e cítrico faiscando no nariz/ borbulhante, histérico/esse é o perfume que me veste de camisa branca, conserta a corcunda do computador e me faz andar alinhado/começa gelado e cortante, inoxidável, uma explosão de noz-moscada que pode assustar. Se você se lembrar do seu dentista faz sentido/óleo de vetiver superterroso e escuro, úmido ou algo de verde profundo/alguns tipos ainda tem uma canela enfumaçada/são perfumes de peito cabeludo, barba cerrada, talvez camisa aberta para despertar o George Clooney em você/ Kouros está na história, tem uma nota de sálvia grande que lembra xixi, pinicando o nariz /É tão fresco e de bem com a vida que fica difícil não pensar nele num bicheiro, o carro branco, camisa aberta.

Entenderam? De agora em diante, é assim que vamos descrever as nossas receitas.

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