Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Ponta e Luiz

Até então ele não tinha prestado muita atenção à cachorra

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Pedro Mairal

Escritor argentino, é autor de "A Uruguaia", pelo qual recebeu o prêmio Tigre Juan de melhor romance em 2017, e de "Uma Noite com Sabrina Love" (2000), entre outros. Ambos foram lançados no Brasil pela Todavia.

Pô, disse Luiz, e a cachorra se levantou do ninho de cobertores num salto feliz. Seu nome foi sendo encurtado. No começo, quando chegou, ainda filhote, lhe puseram Ponta, porque gostavam, ele e a esposa, da piada em código sobre o passado de maconheiros de ambos. Depois ficou Pon, e então apenas Pô. Desceram de elevador. Ponta e Luiz davam as costas a seus duplos idênticos no grande espelho, em silêncio, do décimo primeiro andar ao térreo. Saíram do edifício, atravessaram a avenida costeira e Ponta enfrentou a galopes as dunas em direção ao mar. Minha longa caminhada de corno, pensou Luiz. E estava bem com isso.

Antes de chegar à orla, pegou um graveto de um monte de galhos e arbustos secos. O mar estava calmo, havia sol e soprava um vento frio. Tinham que caminhar, os dois, fazer exercício. Desde que fora castrada, a cachorra tinha engordado. E Luiz também.

Cachorro brinca na praia do Leblon, no Rio - Ricardo Borges - 08.ago.2019/Folhapress

Passara a comer mais desde a vasectomia. O grande roteirista do mundo atrasou a castração de Ponta porque o veterinário tinha ficado doente e, no fim, a cirurgia acabou coincidindo, com apenas um dia de diferença, com a vasectomia de Luiz. Ficaram os dois em repouso. Luiz na cama, cuidado por Silvia e seus chazinhos. Ponta se transferira, de seus cobertores na cozinha, ao quarto com ele. A cachorra nunca subia na cama. Mas alguma coisa nessa convalescência os irmanou.

Até então Luiz não tinha prestado muita atenção à cachorra. Era mais um capricho de Silvia, que era a responsável por alimentá-la e levá-la para passear. E agora, em compensação, estavam sempre juntos. Dois castrati, dizia Luiz em segredo enquanto caminhava pela orla solitária e chamava por Ponta, quando a via se afastar muito. Ponta voltava e ele dava palmadinhas em suas costas. De vez em quando arremessava o graveto e Ponta corria, deixando-se molhar entre as ondas geladas.

Agora que o filho estudava na capital, eles decidiram morar na praia, em uma espécie de retiro, já longe da fúria urbana e da ebulição dos vínculos sociais. Poderiam praticar esportes, ela jogando tênis, ele, nadando. Mas antes estiveram quietos e brigados. Silvia não queria mais tomar pílulas anticoncepcionais e tiveram quase um ano de desencontros sexuais, com preservativos entre eles. Luiz reclamava, perdia o sono, as ondas soando a noite inteira ao fundo. Um dia surgiu o assunto da vasectomia. Luiz parou para pensar. Resignou-se. Concordou. Foi a um urologista. Fez exames. Marcaram o procedimento. Ele compareceu. Foi operado.

E depois de dez dias voltaram a se encontrar na escuridão da noite, Silvia e Luiz, e se amaram, sem barreiras de látex, e tudo funcionou normalmente, apesar do estranhamento do início e da cautela dos corpos. Ambos acharam maravilhoso que tivesse se solucionado de uma vez por todas aquele temor constante de uma possível gravidez não desejada na maturidade. Como não tinham pensado nisso antes? Felicidade geral.

Luiz começou a comer mais e ganhou peso. Às vezes quase sufocava Silvia ali embaixo. Ela parecia estar como que esperando que ele desse por acabados seus resfôlegos finais de morsa castrada, que deslizasse para o lado e dormisse de uma vez. E ele percebeu. Como também percebeu que Silvia retornava com vigor ao tênis de sua juventude, à rotina inabalável das aulas, aos acessórios (faixas de cabelo, lycras, leggings, cordas novas para a raquete).

Algo voltava a estar ereto nela, retesado e vivo. E ela sorria ao abrir mensagens no celular. Uma faísca, uma chicotada vibrante de seus cabelos presos num rabo-de-cavalo quando entrava no carro para ir ao clube. Não voltava antes das três. Sem problema, pensou Luiz, e chamou Pô!, e a cachorra veio e caminharam juntos, dois animais estéreis na manhã de sol.

Tradução por Livia Deorsola

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