Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Eu entro com o violão, você com o macarrão, e a gente faz uma história

Passados 22 anos da morte do avô, Antonio ainda telefona todos os dias para a nonna

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Milly Lacombe

Minha irmã entrou no quarto e viu que Antonio estava arrumando uma mala. Chegou mais perto e enxergou que dentro dela o filho tinha colocado uniformes da escola, um par de tênis e uma escova de dentes solta entre camisetas e bermudas. Ficou intrigada com a cena protagonizada pelo garoto de quatro anos.

- Onde você vai, Antonio?.

- Morar com a nonna, respondeu ele encaixando um tubo de pasta de dentes entre as roupas.

- Por que, posso saber?

- Ué, mãe. O vovô morreu e agora eu preciso ir cuidar dela, disse fechando a mala e se dirigindo à porta. Como ele pretendia chegar à casa da avó nunca ficou claro.

Depois de uma longa conversa na sala com os pais, e de um telefonema para a avó, Antonio concordou em ir apenas no dia seguinte. Ficou combinado que, durante o período de luto, ele passaria os fins de semana com a nonna e também que aceitaria seguir morando com os pais. O acordo foi assinado depois que a avó garantiu que daria um jeito de seguir forte naquele apartamento que um dia já tinha sido tão cheio de gente. Agora viúva e com os filhos casados, teria que se reconciliar com o espaço numa travessia só sua.

Passados 22 anos da morte do avô, Antonio ainda telefona todos os dias para a nonna - Pixel-Shot - stock.adobe.com

Desde o episódio da mala, que aconteceu no dia mesmo da morte do avô, Antonio e nonna passaram a ser uma dupla. Era com ela que ele estava quando, aos seis anos, tentou escapar de uma coleta de sangue correndo aos berros pelos corredores do laboratório, era com ele que ela estava quando, muitos anos depois, precisou passar por uma cirurgia cardíaca e, durante a coleta de sangue pré-operatório, replicou o escândalo do neto.

- Nonna, calma. Vamos olhar para o outro lado enquanto tiram seu sangue, Antonio disse usando uma das mãos para segurar a dela e a outra para apertar tão forte quanto possível o travesseiro da cama hospitalar para que a avó não percebesse que ele estava quase desmaiando.

Foi Antonio que, quando nonna saiu da UTI depois de reparar a mecânica do coração de 84 anos, dormiu com ela no hospital. Foi ele que auxiliou a avó a se vestir quando o médico entrou no quarto e disse: “Adele, estou te dando alta". Foi ele que a levou de volta para casa e a colocou na cama.

Por causa dela, Antonio aprendeu a falar italiano e, em seguida, um pouco do dialeto napolitano. Quando telefona para a avó, o “alô” sempre é: "Ciao cucciolota, amore mio, come va?”.

Passados 22 anos da morte do avô e, portanto, do episódio da mala, Antonio ainda telefona todos os dias. Foi no colo dela que ele chorou o primeiro rompimento amoroso e a primeira fossa. Foi para ele que ela ligou quando a melhor amiga foi internada com Covid e para ele também a improvável primeira mensagem que dizia que a amiga de infância, depois de ser intubada e de quase morrer, estava recuperada. Foi para ela que ele, no começo da pandemia, gravou serenatas virtuais que enviava semanalmente por mensagem de vídeo.

Em 2017, na turnê de Pepino di Capri pelo Brasil, Antonio levou a avó em uma das apresentações. Sentaram em uma mesa perto do palco e cantaram juntos todas as músicas com os olhinhos fechados.

Nessa relação, ela entra com o macarrão, e ele com o violão. Ela entra com o pão e ele com os reparos na TV, no celular e no computador. Ela entra com a magia e ele com a poesia. Eles não procuram se confirmar um no outro, mas se reinventar. Não estão atrás de sedimentar identidades, mas de alargar predicados, atributos e afetos. Não querem se reconhecer no outro, mas se perder. Testemunhar essa história é ter a certeza de que, se os filhos ensinaram minha mãe a cuidar, foram os netos que a ensinaram a amar.

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