Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
Descrição de chapéu LGBTQIA+

Cuidado: em obras

Wesley falava sobre história do Brasil com Carlos, enquanto aprendia com ele a ser pedreiro

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Milly Lacombe

Wesley chegou cedo ao trabalho; era o primeiro dia e ele não queria fazer feio. Antes das seis, tocou a campainha. “Sou o novo ajudante de pedreiro”, disse à pessoa que foi recebê-lo. Levado a uma espécie de vestiário, nada além de uns bancos improvisados, se viu frente a uma dúzia de homens que tomavam café e conversavam. “Chega aí”, disse um dos rapazes estendendo a mão. “Carlos, e você?”. “Wesley”. Depois de uma rodada de “e aí, beleza?”, Wesley colocou a mochila sobre um dos bancos e foi se servir de café. De onde você é?, perguntou Carlos. De Córrego do Bom Jesus, Minas, respondeu Wesley. Em seguida contou que estava em São Paulo havia uma semana morando com a tia e que veio em busca de trabalho para pagar a faculdade. Faculdade do quê, perguntaram. História, disse Wesley. Da hora, murmurou um rapaz magro e alto enquanto mordia uma fatia de pão. Carlos era pedreiro e nesse dia foi instruído a orientar Wesley.

Pedreiros trabalham em obra em São Paulo - Eduardo Knapp - 28.abr.2020/Folhapress

Wesley tinha 18 anos, Carlos, 34. Carlos era capixaba de Sooretama, chegou a São Paulo aos 26 para trabalhar, mas seu sonho era voltar para o Espírito Santo, onde estava o filho. Tinha gostado do negócio da faculdade porque era o sonho que ele tinha para o moleque. Nesse dia, foram embora numa mesma condução: descobriram que moravam na zona sul em ruas não muito distantes.

Passaram a ir e vir juntos quase todos os dias. Enquanto Carlos ensinava Wesley a executar o serviço de pedreiro, Wesley ensinava Carlos o que sabia sobre a história do Brasil. Desde pequeno era apaixonado pelo tema e lia tudo o que podia para entender como exatamente a gente chegou aqui. Em pouco tempo ficaram conhecidos como a dupla “Vem-Vou”, os que iam e voltavam junto. Todo fim de expediente Carlos gritava, Tu, vem?, e Wesley respondia, Vou!

Numa sexta-feira saíram do trabalho e decidiram tomar uma cerveja. Acabaram tomando muitas e, no caminho de casa, Wesley segurou na mão de Carlos. Tá maluco?, gritou Carlos tirando o braço rispidamente. Devo estar, respondeu Wesley. Carlos cerrou o punho e fez que ia dar um soco em Wesley, mas desistiu. Vacilou, mano, disse abaixando a mão. No dia seguinte, Carlos pediu que outro pedreiro trabalhasse com Wesley e, no fim do expediente, disse que não iria para casa, que Wesley fosse sozinho.

Passaram-se algumas semanas até voltarem outra vez juntos para o Capão. Desde quando você é assim?, perguntou Carlos a caminho do ponto. “Assim como?”. “Você sabe como”. “Desde sempre”. “Nunca tomou uns murros não?” “Muitos”. “E mesmo assim não desiste?” “O que faria você desistir de tentar ser feliz?”.

Aos poucos, voltaram a trabalhar juntos e a falar de rejuntes, de paredes e de Brasil. Carlos gostava da petulância de Wesley quando ele dizia como iria reconstruir o país; Wesley gostava da paixão de Carlos quando ele explicava como se constroi uma casa.

Carlos fazia com que Wesley se sentisse seguro; Wesley fazia Carlos sorrir. Num dia quente de verão, Wesley esperou Carlos no ponto e ele não apareceu. No trabalho, perguntou ao mestre de obras, Cadê o Carlos? Voltou para a cidade dele, parece que o filho tá doente, disse o homem. Wesley sentiu uma tristeza tão profunda que teve uma vertigem. Não podia tentar falar com Carlos porque seu celular não fazia ligações nem mandava mensagens. Nesse dia, trabalhou sozinho para que não o vissem chorar. Duas semanas depois, recebeu uma mensagem de Carlos: “Rua Cantinho do Céu 64, bairro de Córrego Alegre, Sooretama, ES. Vem?”.

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