Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor

Paraquedas

Uma vida sem declarações e saltos no abismo é uma vida pequena demais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milly Lacombe

Escritora e roteirista, colunista das revistas Trip/Tpm, cronista do UOL Esportes e autora do romance 'O Ano em Que Morri em Nova York' (ed. Planeta).

— Eu vou dizer a ela o que estou sentindo

— Duvido! Vai nada. Você não vai ter coragem

— Vou. Vou dizer hoje mesmo. Eu fiz o jogo do sim e do não voltando para casa e pensei que se a placa do próximo carro que passasse por mim tivesse os números 4 e 6 então era para eu me declarar.

mulher jovem de perfil está em um parque em um dia enrolado; ao fundo, um pássaro voa alto no céu, próximo ao sol
Jovem aproveita dia ensolarado na cidade de São Paulo - Karime Xavier - 26.ago.2020/Folhapress

— Ah, vai que essa placa cruzou seu caminho?

— A placa que passou foi 2323; ou seja: dois mais dois, quatro; três mais três, seis.

— Que lógica maravilhosa. Parabéns.

— Você acha que não falo nada então?

— Pelo amor de Deus! Fala porque eu não aguento mais você me contar essa história de amor à primeira vista que nunca se realizou porque a outra pessoa não faz ideia de que você se apaixonou.

— E se ela não for gay?

— Se ela não for gay, ela pode ser bi, pode ser hétero curiosa, são muitas opções.

— E se ela não estiver a fim?

— Você não vai morrer. Coragem, Nina. Vai lá e diz o que sente. Libera essa energia no mundo, me deixa voltar a ver Netflix em paz. Um beijo.

— Não! Fica aí. Vou mandar a mensagem pra ela e você me faz companhia até ela responder.

— E se ela demorar? Eu tenho que fazer o jantar, minha vida não é te aconselhar.

— Ana, para de ser chata. Ela vai responder. Pera. Eu já tinha feito um texto, vou ler pra você o que escrevi.

— Nina, não! Você já leu esse texto pra mim duzentas vezes. Tá ótimo. Aperta o enviar.

— Tá. Ai, meu pai… Enviando… foi. Foi, Ana!

— Pelo amor da nossa senhora das caminhoneiras, Nina. Que alívio. Me deixa ir fazer o jantar agora.

— Não. Vamos falar de qualquer outra coisa. Eu preciso parar de suar e de tremer.

— Nina, que puta drama dos infernos. Vem cá: você nunca foi rejeitada?

— Não…

— Menina do céu, mas você tem quase 35 anos. Como assim?

— Eu nunca me declarei para outra pessoa, então não tem como ser rejeitada, né?

— Que ego monumental, hein?

— Ah, tá. Agora você vai torcer para ela me rejeitar para eu aprender uma lição?

— Não vou não porque isso me custaria mais semanas escutando sua dramatização.

— O que eu faço se ela disser não?

— Você faz como eu faço: “o não eu já tenho, agora vou atrás da humilhação”.

— Eita, Ana. Você já foi muito rejeitada?

— Opa.

— E você fica numa boa?

— Claro que não. É horrível. Medonho. Eu fico no chão, me acabo, me dilacero.

— Não quero sentir isso não, Ana.

— Amiga, a alternativa é se fechar, é se acanhar, é deixar de tentar. Parece segurança, mas tá mais pra covardia.

— Se ela me der um toco, como vou olhar na cara dela no trabalho amanhã?

— Com a expressão de uma pessoa que teve a ousadia, a petulância de se colocar em uma situação de vulnerabilidade. Com essa cara. E outra: o universo tende a recompensar a gente de alguma forma, sabia?

— Ah, tá bom. O universo vai me dar um aumento de salário se eu levar um toco? — Não quero recompensa, quero que ela me queira.

— Para de drama, Nina. Se ela não quiser pega o não e se apropria dele. É teu. E só é seu porque você ousou declarar amor. Porra, Nina, olha em volta. Olha esse mundo. Declarar amor é coisa pra caramba. Que mal você tá cometendo?

— O de deixar a outra pessoa sem jeito.

— Nina, você tá dizendo pra ela que você está apaixonada. Você tá rendendo uma homenagem. É só uma declaração de desejo. Se não for recíproca, a vida segue com você tendo confessado amor, olha que coisa linda.

— Ela nem visualizou a mensagem.

— O mundo não vai acabar se ela disser não, e nem vai se curar se ela disser sim. Se esse for seu primeiro toco, eu espero que ele não te paralise e que sirva de aperitivo para uma vida de mais declarações e saltos no abismo. Viver sem saltar é viver uma vida pequena demais.

— E se eu me estatelar?

— E se você voar?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.