Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor

A vida sexual dos cegos, por Ju & Sandro

A história deles começou há 11 anos, num 'blind date'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Vamos economizar a luz do motel", diz Sandro Rodrigues, 49, entrelaçando sua mão nos dedos de Jucilene Braga, 41, esmaltados com a misturinha azul da marca Giovanna Antonelli.

Aos 11 anos, Sandro recebeu o diagnóstico de retinose pigmentar, doença hereditária que degenera a retina. O mundo se apagou por completo para o adolescente de 16 anos que costumava mergulhar nos olhos azuis de Maitê Proença. "Até os 19, nenhuma menina queria sair comigo. Pensei: ‘Se continuar assim, tô na roça’."

A ouvidora Jucilene Braga, 41 anos, está abraçada com seu marido, o analista de sistemas Sandro Rodrigues, 49 anos; os dois estão com o rosto colado um no outro
O analista de sistemas Sandro Rodrigues, 49, e a ouvidora Jucilene Braga, 41, que se conheceram em 2010 num 'blind date' - Gabriel Cabral/Folhapress

Ju tinha cinco anos quando perdeu o olho esquerdo para um tiro de espingarda de chumbinho, disparado por um tio também criança à época. Mais tarde, sofreu derrames no globo ocular e ficou cega de vez.

Ela estudou num colégio de freiras onde bastava pegar na mão para ganhar reprimenda. Escutou muito "Torpedo", o programa que Luciano Huck e Adriane Galisteu apresentavam nas noites de domingo na Jovem Pan, para se tocar que tocar os outros não era "nenhum absurdo". Credo, que delícia.

Sandro e Ju perderam a vista sem se perder de vista. Em maio de 2010, um dia chuvoso, amigos em comum armaram um "blind date" entre o analista de sistemas e a ouvidora, os dois divorciados e são-paulinos.

Ele cruzou 37 km e gastou R$ 150 para chegar "num cavalo branco escrito ‘táxi’ em cima". Abriu-lhe a porta a mulher do perfume Eternity, da Calvin Klein, do salto alto batucando no chão, das pulseiras barulhentas anunciando uma entrada triunfal.

Tomaram uma garrafa de Santa Carolina, tinto seco chileno, e há 11 anos a relação envelhece tão bem quanto o vinho que adoram. "Não precisei sair de casa para encontrar meu príncipe", conta Ju.

Ela ajeita a mecha loira atrás da orelha, o microshort florido subindo nas coxas, a alça da blusa de renda branca ensaiando tombar para o lado direito. Quis se sentir sensual para falar sobre sua sexualidade.

"Não se engane", aconselha. O mundo dos cegos é promíscuo, "como uma cidadezinha do interior", onde todo mundo pega todo mundo e alguns até se convidam para ménages à trois.

"Muito cego é malandro pra cacete", concorda Sandro, malícia na voz. A vida sexual de quem possui baixa ou nenhuma visão não deve ser tabu, mas tem suas peculiaridades.

Para Sandro, cheiro, voz, hálito e camisolinhas de cetim produzem efeito similar a uma Playboy. Ju hiperboliza sensações com um spray "que dá choquinho" e uma balinha "que ferve que nem Sonrisal".

O que poupam em luz do motel esbanjam em energia sexual. Mas seria bom pedir caipirinhas "num cardápio em braile", afirma ela. Falta acessibilidade. "Uma vez essa aí quase se matou. Esqueceu que tinha escada no quarto", Sandro emenda, reparando que o perrengue não é exclusivo de cegos. "Se o cara é cadeirante, a cadeira não encaixa na cama redonda nem a pau."

É 2014 quando eles contam à colunista a primeira parte de uma história que já pressentiam ter vida longa. Ainda não casaram, não pularam de paraquedas juntos. Não perderam Charlie, o cão-guia, e conheceram Zuca, a labradora preta que hoje conduz Ju pelas ruas de São Paulo.

Ainda não tiveram Fernando, o filho de 8 anos que gosta de se apresentar como guia dos dois, "embora a gente não o deixe responsável por isso", pondera a mãe.

Vão demorar alguns anos para perceber o mal que a tecnologia touch screen trará à vida deles. Como o dia em que irão a outro motel, não conseguirão mexer em nada, ligarão atrás de suporte e ouvirão a recepcionista instruí-los a tentar o controle dourado.

"Você não tá entendendo, eu não enxergo", Ju então explicará, de novo, sua deficiência para um mundo que pena para "imaginar um cego que frequenta esses estabelecimentos". Falta visão a quem mesmo?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.