Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Mercado das flores

Ele passa flutuando, crendo que as flores são só de amor e que essa rua é uma metáfora da maravilha que o embala

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Pedro Mairal

Pode um homem voar baixo na madrugada diante dos mil olhos da rua sem que ninguém se surpreenda? Sim, claro. Mas primeiro, me deixa explicar. Não era um homem, era um moleque, de vinte e três, que no dia anterior pegou um ônibus para a casa de sua namorada. Saía de um desses bairros de edifícios que se acham europeus, mas que na esquina sempre tem um carrinho colorido de comida e um terreno baldio de uma demolição que virou estacionamento. Quadras de vitrines iluminadas e brilhantes sobre um mendigo.

Daí partia o ônibus e as ruas iam se tornando cada vez mais abertas, na medida em que avançava para os bairros menos centrais, mais residenciais, mais populares, com casas mais baixas, cruzando avenidas que eram basicamente umas nuvens e céu azul.

Chegava à casa de sua namorada, a uma quadra da grande igreja evangélica, onde até quase agora estava o Mercado das Flores. Chegava ao entardecer, com o coração galopando até passar a relinchar quando, através do portão da rua, a via aparecer no final do corredor com a chave na mão, sabendo que ele já estava lhe admirando.

Mercado com vários tipos de flores
Rudy and Peter Skitterians por Pixabay

De banho recém-tomado, o cabelo molhado, a beleza baixava sobre ela como uma luz milagrosa que vinha dos céus, da cabeça aos pés, de chinelos. Ela lhe sorria sempre na mesma distância do corredor. Depois lhe abria, se abraçavam e se escapuliam para dentro da casa. Tinham a noite inteira juntos até perto da aurora quando sua mãe voltava do trabalho do hospital. Atrás deles, a porta vermelha se fechava e se trancava, com duas voltas de chave.

Não era o primeiro pássaro da alvorada que advertia aos amantes que o tempo esgotara. Eram ainda os ruídos do Mercado das Flores que começava a se organizar ainda às cinco da manhã, com os canos das estruturas da feira badalando ao serem empilhados no asfalto. Como uns sinos que anunciavam que era hora de tirar os carros da rua, que logo mais chegava a mãe cansada, tabaquenta, exausta do hospital, e sem querer cruzar com nenhum estudantinho penetra, não tinha a menor graça que sua filha de vinte anos metesse o namorado para dentro de casa em segredo. Sentiria ela no ar, suspeitaria pelo cheiro ao chegar? Nesse momento, ele já picara a mula em direção ao ponto de ônibus pelas ruas ainda no breu.

Todo este prólogo para chegar aqui, nestas quadras do Mercado das Flores, onde começavam a descarregar os caminhões que vinham dos viveiros da periferia. Gritos de trabalho, muito corre, caixas de flores de todas as cores sacolejando na circulação dos feirantes, dos ajudantes, das tias das barraquinhas. Caminhões entrando de ré, na diagonal, repletos de dálias, astromélias, violetas dos Alpes, rosas amarelas, petúnias.

Ele atravessa tudo isso sem saber o nome de nenhuma das flores porque ainda não teve que levar para alguém um buquê de açucenas no asilo, nem velar a um morto com uma coroa de gladíolos, nem atirado cravos sobre um caixão antes de despejar terra. Olhem como ele passa flutuando, crendo que as flores são só de amor e que essa rua é uma metáfora da maravilha que o embala, uma extensão do perfume dos abraços. Caminha sem pisar no chão, lânguido, desvalido pelos beijos, invencível, transparente, entre as flores molhadas, as flores de um dia.

Ninguém lhe disse para olhar e ver as flores pisoteadas do dia anterior. Vai ingênuo, confiado na renovação eterna das pétalas, como um zangão xaropado, bêbado de beleza e de ternura, recém-saído do mel do fundo da flor. Pensa ser imortal, pensa que é um fantasma, pensa que não lhe vencerá nem a foice do tempo nem as flores mortas do desamor. Para que desiludi-lo agora? Deixem que ele siga mais um pouco assim. Que ninguém dê um pio.

Tradução de Ellen Maria Vasconcellos

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