Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Detalhes tão imensos de nós dois

A história de amor de Bete e Otávio

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Milly Lacombe

O primeiro sinal veio com uma frase aparentemente banal. "Vamos tomar nosso café da manhã, meu amor?" Eram quase quatro da tarde, e Bete achou que Otavio estava fazendo uma piada. Mas não era piada. Era um sinal da demência que o arrancaria dela. Otavio e Bete eram casados havia 50 anos; ela tinha 75 e ele, 79. Três filhos, cinco netos e um bisneto a caminho. A doença avançou com audácia e em pouco tempo já não o reconhecia.

Os filhos disseram à mãe que, para conforto do pai, o ideal seria colocá-lo numa clínica especializada. Bete resistiu. Mesmo não sendo mais reconhecida pelo marido queria ele a seu lado.

Se ele não sabia quem ela era, ela sabia perfeitamente quem ele era: o maior amor que já sentiu.

Casal de idosos caminha de braços dados em um parque
Otavio, o maior amor que Bete já sentiu - Pixabay

O rapaz que, aos 29 anos, a viu numa festa e a tirou para dançar. O homem que, dias depois, a pediu em namoro. O pai de seus filhos, aquele que esteve ao lado dela quando seus pais morreram num acidente de carro, a pessoa que preparava a melhor macarronada do mundo, que a encaixava em seu ombro todas as noites na cama, com quem lia livros em voz alta na sala nas tardes de domingo, que sabia que ela gostava quando mexiam em sua orelha, perto do brinco e bem devagar, usando o dedão e o indicador em ritmo constante. Enquanto fazia isso, ele cantava a canção que ela mais gostava: "como pode um peixe vivo viver fora da água fria. Como poderei viver, como poderei viver sem a sua, sem a sua, sem a sua companhia".

Otavio não se lembrava de nada disso, mas ela sim. Quanto mais ele se esquecia, mais ela relembrava. Era como se a escuridão na consciência do marido trabalhasse de forma inversa na dela: enquanto a dele apagava, a dela acendia.

Otavio foi para uma clínica, e Bete passou a visitá-lo todos os dias. Otavio não sabia quem era aquela mulher, mas se sentia bem em sua presença. Numa tarde quente de fevereiro, sentados no jardim tomando uma limonada, Bete pediu o marido em namoro. Otavio sorriu e aceitou.

Quando Bete ia embora, Otavio dizia aos enfermeiros que sua namorada voltaria no dia seguinte. E ela voltava. Teve beijo, teve abraço, teve aconchego na cama do quarto na clínica, teve ver filmes de mãos dadas, teve erotismo e prazer.

Otavio não se lembrava de nada nem de ninguém, só da namorada e das coisas que faziam juntos. Foram quase três anos vivendo assim até Bete adoecer e precisar ser internada. Otavio ficou inquieto quando ela não apareceu pela primeira vez. Pediu ajuda aos enfermeiros, que explicaram a ele que a namorada estava doente e internada. Otavio chorou e um dia quis ir vê-la.

Quando chegou ao hospital acompanhado de um de seus cuidadores, os filhos estavam no quarto e Bete estava inconsciente. Ele não reconheceu nenhum dos filhos, deu um oi geral e foi direto para perto da namorada.

Colocaram uma cadeira para que ele se sentasse bem perto de Bete. Depois de alguns minutos, Otavio pediu para ficar sozinho com a namorada. Todos saíram e ele colocou uma das mãos no rosto dela.

Ao seu lado, os monitores indicavam que o coração dela batia fraco, ao contrário do dele. Otavio então levou a mão à orelha de Bete e começou a mexer como fazia antigamente.

Sua voz declamava "Peixe Vivo" bem baixinho quando um dos filhos entreabriu a porta e viu o pai cantarolando para a mãe. O coração de Bete bateu um pouco mais fraco e Otavio, mesmo chorando, não parou de cantar.

Cantou por muito tempo até que os batimentos pararam por completo. Com dificuldade, ele levantou, deu um beijo em sua testa, sentou novamente e voltou a cantar baixinho enquanto mexia na orelha de sua mulher.

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