Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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O sapato branco e as duas vidas alteradas

O homem disse a Maria que havia sido flechado quando a viu caminhar

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Milly Lacombe

Rio de Janeiro, 1965

Ele a viu passando por uma calçada de uma rua do bairro do Rio Comprido. Ele estava no carro, conduzido pelo chofer, como se dizia à época. Num ímpeto, pediu que o motorista parasse.

Desceu correndo e foi atrás da mulher que havia chamado sua atenção. Vestido primaveril na altura da coxa, andar imponente e vigoroso, olhar soberano.

Onde estaria? Andou para lá e para cá, atordoado, por quase meia hora.

Como não conseguiu encontrá-la, voltou ao carro. No caminho para Laranjeiras, onde morava, pensou que precisava dar um jeito de saber quem era aquela mulher e teve uma ideia.

Sapato branco com cadarço preto
Mabel Amber por Pixabay

Em casa, pegou a lista telefônica e foi ligando para todos os números registrados tendo como endereço as casas daquela rua. Chances remotas porque talvez ela nem ali morasse, mas seria uma primeira tentativa.

Centenas de telefonemas frustrados e muitas respostas atravessadas. "Não tem ninguém aqui com essa descrição, seu tarado", foi uma frase que ouviu uma dezena de vezes.

Até que, prestes a desistir, foi atendido por uma voz de mulher que falava italiano. Chamava-se Maria.

Maria disse a ele que a mulher da descrição poderia ser sua filha, mas que ela não estava em casa; estava fora com o noivo. O ímpeto dele deu uma esfriada, mas não se apagou.

Enquanto falavam ao telefone, a filha de Maria caminhava para se encontrar com o noivo em um restaurante do bairro. Chegou e notou que o noivo calçava sapatos brancos.

Por que um sapato branco?, ela quis saber. Ele disse que tinha gostado do sapato numa vitrine. Mas sua calça é preta, sua camisa é escura, por que um sapato branco?, ela insistiu. Ele não teve resposta e ela também não soube explicar como um sapato branco pôde arruinar o que sentia pelo noivo.

O casamento já estava marcado, mas ela não pensou duas vezes porque não se via passando a vida com alguém que usava sapato branco e calça escura: terminaram.

Em casa, quando a filha voltou, Maria contou que um homem havia ligado querendo saber se uma mulher mais ou menos com a descrição dela morava ali. O homem disse a Maria que havia sido flechado quando a viu caminhar, que precisava saber quem ela era e que voltaria a ligar.

De fato, voltou a ligar.

Curiosa e outra vez solteira, a filha de Maria aceitou que ele fosse até o portão da casa dela para que o visse de longe. Não ia arriscar um encontro aleatório com um maluco que havia telefonado para a rua inteira, que a essa altura já falava que havia um tarado no bairro e que alguma coisa precisaria ser feita a respeito.

Ele apareceu no portão. Não calçava sapatos brancos.

Foi convidado a entrar. Na sala, conversaram e ele ficou para o jantar: macarrão ao sugo e vinho.

Saíram mais algumas vezes depois desse dia.

Ele soube que ela, os irmãos e a mãe eram refugiados da guerra na Europa e que, no Brasil, ela havia sido colocada por anos num colégio interno.

Ela soube que ele foi criado pelos tios porque era uma criança asmática e os pais, que tinham mais seis filhos, não conseguiam cuidar dele com a atenção devida.

Os tios, muito ricos e sem filhos, deram a ele a infância de um príncipe em Laranjeiras.

Uma dimensão de rejeição familiar, de perdas e de isolamento, os uniu. Conforme se conheciam, foram se apaixonando. Casaram não muito tempo depois do primeiro encontro.

Tiveram três filhas e um filho a quem deram, da melhor maneira que puderam, o acolhimento e a segurança que faltaram em suas infâncias.

Uma das filhas é a autora desse texto, que só existe porque num dia qualquer em 1965 um homem decidiu calçar sapatos brancos.

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