Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Ali sentado

Não sinto pena do Víctor. Eu o quebrei. Precisei fazer isso

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Pedro Mairal

Ele ainda deve estar tentando entender o que aconteceu. Através dos jorros de água que caíam pela divisória de vidro do boxe, eu o vi fumar vestido, sentado na tampa do vaso sanitário, olhando para mim. Era a imagem de um homem derrotado. Não sei se o erro foi meu ou não, mas sei que desde aquela minha vitória, a partir daquele banho redentor, pude seguir em frente. Não sinto pena do Víctor. Eu o quebrei. Precisei fazer isso. Ele sempre me olhava, babão, do outro lado do aquário do seu escritório. Notava se eu estava mais ou menos maquiada, se eu voltava a pôr o conjunto azul que ele sempre elogiava. Ocupávamos uma posição parecida. Eu, secretária, ele, em vendas. Ganhávamos a mesma coisa. Ele era "o bonzinho", o amigo, o abutre disposto a esperar décadas para cair em cima de mim num momento de fraqueza. Fazia-se de ouvinte, de confessor, e eu lhe contava as minhas idas e vindas com "o homem casado".

Era a imagem de um homem derrotado - Karen Bleier/AFP

Assim o chamávamos, em código. Nunca lhe disse que se chamava Julio. E sim, era verdade, Julio era casado, nos encontrávamos em segredo, sempre na surdina. Estava apaixonada por Julio, pelo Audi dele, pelo cheiro de couro do Audi dele, pelo fim de semana ultraclandestino em que fomos à praia. Estava apaixonada pela ternura com a qual ele falava de sua filha, mas também pela história sobre a rachadura que punha em perigo a relação com sua mulher. Por essa rachadura, entrava luz para mim. Julio dizia que estava cansado dela. Acreditei em tudo. A velha ladainha de que a separação era iminente. No dia seguinte de algum encontro com Julio, eu saía com Víctor para o almoço, ou para fumar na escada, ou para tomar uma cerveja no fim da tarde, e ele me escutava contar tudo, me aguentava com sua cara de testemunha, de eterno suplente, resignado a ouvir as histórias dos que pareciam realmente atuar na vida. Tinha algo inofensivo, o Víctor. A cada tanto mencionava sua namorada, mas nunca me mostrava fotos. Uma vez os vi juntos no cinema, um pouco mais adiante na fila. Era uma moça magrinha, com cara de tristeza italiana.

No dia que Julio me disse que não podia me ver nunca mais e bloqueou as minhas mensagens nas redes sociais, fui tomar uma cerveja com Víctor na saída do trabalho. Contei o que tinha acontecido. Disse tudo com um sorriso, fingindo já ter superado, mas desmoronei. Pedi um táxi e ele se ofereceu para me acompanhar, porque disse que estava vendo como eu estava mal. No caminho, chorei em seu ombro, e ele me abraçou. Secou as minhas lágrimas, me deu um beijo na bochecha. Não chore, minha linda, ele disse. Me olhou nos olhos e me beijou na boca. Meio que tentou um beijo de língua, mas eu o freei. Quando chegamos em casa, me disse: Quero subir. E eu o deixei subir. Me beijou no elevador, na porta, me apertou com uma fome desesperada. Eu estava em carne viva e o deixava avançar. No sofá, fomos arrancando a roupa. Ele quis apagar a luz e fechar as cortinas, mas eu disse que não, que deixasse tudo aberto e a luz acesa. Os vizinhos da frente podem nos ver, ele disse. Não tem problema, respondi. Fomos para a minha cama e no quarto também acendi a luz. Ele ficou um pouco inibido, mas estava decidido, atirou-se em cima de mim, quase sem poder acreditar que, depois de quatro anos me desejando todos os dias na firma, finalmente ia dormir comigo. Como você é linda, repetia várias vezes. De repente, perguntou: tem camisinha? Eu disse: chega. Não vamos fazer nada. Emudeceu. Vou tomar um banho, falei. Posso tomar banho com você?, perguntou. Melhor não. Se veste, por favor, eu disse. E foi assim que tomei banho enquanto ele fumava, de roupa, sentado no vaso sanitário com a tampa abaixada, me olhando. No dia seguinte, pediu para mudar de setor na empresa e não voltamos a nos cruzar.

Tradução de Livia Deorsola

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