Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

A professora particular

Se você fosse a minha namorada, eu jamais te faria se sentir sozinha em momento algum

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Pedro Mairal

Eu estava jogando fora uns papéis velhos para não continuar carregando isso pela vida em mais uma mudança e, em meio à dispersão de caixas e pastas, apareceu o caderno. Foi como se me aparecesse ela. A permanência dela em meu sangue voltou feito uma onda. Minha mulher e meus filhos passavam por mim me perguntando coisas, pequenas decisões. As tolhas a gente põe nas caixas grandes ou nas pequenas? Não tinha que descongelar a geladeira antes de transportá-la? Não conseguia responder. Segurei entre as mãos aquele caderno como se fosse a única coisa que salvaria do fogo.

Nas páginas riscadas estava sua caligrafia, seus números e frações, suas fórmulas químicas, suas frases, como "retículo endoplasmático liso". E a letra já era ela mesma sentada na cozinha de seu apartamento minúsculo, me dando aulas particulares, sentada enquanto abraçava um dos joelhos, com um pé descalço, a sandália no chão, o pé nu. Ela, com uma camiseta e um short, os cabelos meio presos, tentando me fazer entender uma equação.

Caderno, lápis e borracha; saudade da professora particular - Gabriel Cabral - 21.ago.19/Folhapress

Uma quantidade de informação científica que entrava por um ouvido e saía pelo outro, porque a verdadeira ciência universal era ela comendo uma maçã diante dos meus olhos, a forma como seus dentes cravavam-se na fruta e, com um ruído crocante, davam uma mordida e deixavam a marca da dentada. Seus dentes brancos. Eu tinha 19 anos e achava que queria estudar medicina. Estava iludido, mas a fascinação pela minha professora particular me fez esticar mais um tempo a grande mentira.

Eu ia mal em tudo. Meu destino como médico começava a se evaporar. Tinha vergonha de ir à faculdade. Às vezes ficava na cafeteria. Meus colegas de classe avançavam feito um batalhão, se juntavam para estudar, dominavam conceitos que eu ainda desconhecia. Estava ficando para trás, mas saber que eu ia voltar às terças e às quintas às minhas aulas particulares me dava um pouco de vida.

Ela me abria a porta com pequenas variantes: shorts de ginástica, legging preta, camiseta, top, cabelos soltos, coque se desprendendo, com óculos, sem óculos, às vezes simpática, às vezes falando ao telefone com uma fúria contida contra o namorado. Esses telefonemas a levavam a fechar-se no banheiro para que eu não escutasse: você é um idiota, te disse isso, te disse que me senti maltratada, você me ignorou a festa inteira e ficou lá falando com aquela vagabunda, como se eu não existisse.

Querida professora particular, se você fosse a minha namorada, eu jamais te faria se sentir sozinha em momento algum, muito menos numa festa, onde daria a vida para te ver sorrir ao meu lado, te ver se divertindo, irradiando, entre todas as pessoas, a energia da sua beleza e do seu carisma.

Eu a via sair do banheiro com os olhos vermelhos. Desculpe, ela dizia, vamos ver biologia hoje? Sim, eu pensava, e vamos ver a química do amor, as alterações microcelulares do meu coração insuflado e vermelho, vamos ver como fervem os meus hormônios quando observo os pelos do seu braço anotando alguma coisa no caderno, vejamos os estragos que a oxitocina e a dopamina fazem na minha corrente sanguínea quando, com calor, você prende os cabelos, e seu pescoço é todo feito de beijos imaginários, e olho rápido as suas axilas, que ficam gravadas no fundo desamparado da minha frustração sexual. Você está me ouvindo, Chico? Ela não me chamava de Francisco, me chamava de Chico.

No último dia que a vi, ela abriu a porta com a cara derretida de tanto chorar. Desta vez a briga com o namorado parecia ter sido feroz. Eu disse oi. Você está bem?, perguntei, e ela desatou a chorar no meu ombro. Fiquei imóvel. Depois abracei sua cabeça, lhe dei um beijo na bochecha para que não chorasse mais; ela respirou fundo e de repente nos demos um beijo profundo e desesperado.

Tradução de Livia Deorsola

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