Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Uma caixa vermelha

Olhei para ela e em cima de mim caiu o peso do tempo

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Pedro Mairal

Eu tinha me esquecido de que a caixa estava lá em cima, naquele armário alto onde a pus faz dez anos. Não a alcançávamos nem na ponta dos pés sobre uma cadeira. Mas, numa tarde de começo de inverno, pedi ao meu filho que pegasse uns cobertores que eu tinha posto em um saco e que não encontrava em canto algum. Meu filho pediu emprestada a escada ao porteiro e, lá de cima, me disse: É esta caixa, mãe? Olhei e em cima de mim caiu o peso do tempo. Porque o tempo pesa muito mais do que qualquer objeto.

Não!, eu disse, isso você deixa aí. Encontramos os cobertores, fingi que continuava dando ordens e voltas pelo quarto como sempre, mas essa caixa ficou fazendo barulho na minha cabeça pela tarde toda e grande parte da noite. Como se saíssem ecos da caixa vermelha.

Caixa vermelha sobre uma mesa também vermelha
Scarlett Alt na Unsplash

No dia seguinte, acordei cedo, fumei na sacada e quando o meu filho foi para o clube, subi na escada e desci a caixa. Não quis nem abrir. Saí para a rua, agasalhada, com a bolsa e a caixa debaixo do braço. Era comprida e leve. Onde se pode queimar uma coisa assim? Tinha que haver fogueiras nos bairros, uma queima mensal onde se pudesse jogar coisas na grande pira e vê-las arder. Um bom fogo, em vez deste destino imundo de lixo pisoteado, revirado, tirado dos contêineres, manchado com sucos e líquidos pretos entre as coisas estragadas, torcidas, descartadas. A purificação do fogo, isso era o que eu estava buscando. Andei até a estação central e subi no trem das 9h30.

Quando se deu a partida, fui olhando pela janela os velhos galpões oxidados, os terrenos ao longo da linha do trem, os vagões de descarte, os montinhos de pedras cinza... Zonas alambradas, espaços urbanos sem solução, com cimento quebrado e plantas crescendo entre as rachaduras. Onde pode uma mulher acender fogo? Alguém que quer queimar uma coisa, aonde pode ir? Deixei que o trem me levasse mais longe. A cidade foi ficando espaçada, como se se esquecesse de ser. Os descampados aumentaram. De repente, em um terreno baldio, vi um cavalo amarrado. Até onde ia esse trem? Quando já tinha passado uma hora e só se via campo ao redor, desci na estação seguinte.

Fui pelo canto de uma via e desviei por um caminho de terra lateral. Os cachorros de uma casa latiram para mim, mas não me seguiram. Me afastei. Não via mais ninguém por perto. Na lateral do caminho, juntei uns galhos secos, uns cardos, molhei com acetona um lenço de papel e acendi fogo. Acrescentei mais cardos, uns gravetos e, quando a chama já estava grande, joguei a caixa em cima e acendi um cigarro.

Ela estava pegando fogo e me arrependi no último momento. Tirei a caixa e me queimei um pouco. Abri, e dela tirei o vestido. Estava um pouco amarelado nas bordas, mas continuava igual. Olhei em volta para ver se não vinha ninguém. Me despi rapidamente e em cima da roupa de baixo pus o vestido branco. Ainda servia. Não consegui subir o fecho das costas. Apoiei o celular no poste da cerca de arame e tirei uma foto com o timer. Uma mulher de 50 anos, vestida de noiva, fumando ao lado de uma fogueira no meio do campo. Nunca mostrei essa foto a ninguém.

Tive a tentação de dar uma de "a louca do vestido", voltar de trem com o vestido de noiva no corpo, gritando pelos vagões, aparecer assim na porta do homem covarde duas décadas depois. Mas sou silenciosa. Tirei-o, pus outra vez as minhas roupas e joguei o vestido sobre as chamas. Ele ardeu como se estivesse esperando esse fogo desde o dia que o pus na caixa, quando o pai do meu filho decidiu, no último momento, que não queria se casar. Sem pressa, deixei que ele se tornasse cinzas. Depois, com um pedaço de pau, desfiz a fogueira e voltei para a estação.

Tradução de Livia Deorsola

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