Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor
Descrição de chapéu Relacionamentos

A metade escura

Ela está maquiada, tem ar de boneca, cabelos vermelhos, sardas pintadas, pernas cruzadas com meias listradas e salto agulha em frente do tripé do celular

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Pedro Mairal

Escrevam nos comentários as coisas irritantes que seus namorados ou suas namoradas fazem, ela diz. Está fazendo uma live, sentada em uma poltrona, muito bem iluminada por um aro de luz branca que forma uma fagulha digital, um círculo mínimo na íris, o que lhe dá uma aparência de ciborgue.

Está penteada e maquiada, com ar de boneca, os cabelos vermelhos, sardas pintadas, as pernas cruzadas com meias listradas e salto agulha em frente do tripé do celular. Sustenta um sorriso frio e está rodeada de bichos de pelúcia, com os quais vai conversando.

Enquanto faz uma live, ela está sentada em uma poltrona, iluminada por um aro de luz branca que forma uma fagulha digital, um círculo mínimo na íris, o que lhe dá uma aparência de ciborgue
Enquanto faz uma live, ela está sentada em uma poltrona, iluminada por um aro de luz branca que forma uma fagulha digital, um círculo mínimo na íris, o que lhe dá uma aparência de ciborgue - Adobe Stock

Deve ter uns 30 anos. Atrás, na parede, há um cartaz de néon rosa que diz Love Yourself, com um coração atravessado por uma flecha que faz uma curva e volta a perfurá-lo. As pessoas deixam comentários e ela os vai lendo.

Que horror, ela responde. Outro diz: A minha namorada esvazia as forminhas de gelo e não enche de novo. Redflag, amigo! O meu namorado se faz de desentendido quando a gente tem que cozinhar. Termina com ele agora mesmo!

Ela, que se apresenta como LYS (Love-Your-Self), dá conselhos sobre as vantagens de morar sozinho. Fala sussurrando bem perto do microfone e às vezes apoia na trama metálica do microfone as unhas esculpidas, fazendo um barulhinho hipnótico: Não tolerem esse tipo de coisa, amigas, amigos. Parecem detalhes, mas isso tudo torna a vida um inferno. Para que ficar negociando o que comer, a que horas, qual série ver, para onde sair? Se dar bem consigo mesma é o que importa.

Onde está a Kitty? Queremos ver a Kitty, diz um comentário. Kitty está no veterinário porque estava com um pouco de dor de barriga, diz Lys. Amanhã volto com ela. Às vezes acho que vocês gostam mais da Kitty do que de mim, ela diz com uma gargalhada que se apaga rápido.

Acariciando o veludo da poltrona, olha-se enaltecida no enquadramento cinematográfico e diz: Já falamos uns dias atrás da chama, do cuidado que temos que ter com essa chama interna, esse fogo secreto, e de como devemos fazer com que isso seja o seu guia... Que barulho é esse?, alguém pergunta em um comentário. Lys olha para cima. É o meu vizinho, que é um freak, e às vezes bate no chão para eu ficar quieta. Shhh!, ela diz levando o dedo indicador aos lábios. Por isso é que às vezes eu falo sussurrando com vocês.

Lys exibe presentes que chegaram, abre pacotes, rasga embalagens, mostra caixas de maquiagem, pincéis, cremes, escovas. Agradece; chovem coraçõezinhos na tela; ela experimenta batons de várias cores em primeiríssimos planos de sua boca; passa rímel; pisca a centímetros da lente do celular.

De repente, ouve-se de novo o barulho das batidas. Vou ter que deixar vocês porque o meu vizinho de cima está meio nervoso, ela explica. Amo vocês! Lembrem-se de que na bio está o link para todas as coisinhas que quiserem comprar, e podem me perguntar qualquer coisa, é só me pedir um oizinho e eu mando. Amo vocês! Bye!

Encerra a gravação e seu sorriso desaparece, como se uma sombra caísse em cima dela. Levanta-se e passa para a metade escura do ambiente, pisando em roupa espalhada, pilhas de caixas abertas, sacos rasgados. Tropeça em algo e no susto se apoia em uma mesa da qual caem pratos sujos. Começa a xingar.

Entra no cômodo ao lado. Uma mulher velha prostrada, com uma muleta na mão, bate na parede e a olha exorbitada. Como você alcançou a porra da muleta?, ela grita enquanto a arranca num puxão. A mulher emite um gemido. Já vou! Já sei!, grita Lys. Vai até a cozinha e tira do freezer uma ampola. Verifica se o líquido não está congelado e prepara uma injeção. Dentro do freezer, em uma bolsa transparente, está sua gata morta.

Tradução de Livia Deorsola

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.