Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Teresa me tira o sono

Meu irmão anda feito um fio desencapado, como eu nunca tinha visto. Não consigo acalmá-lo

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Pedro Mairal

Teresa me tira o sono, diz meu irmão. Eu o vejo devastado pela insônia, acelerado, quicando uma perna. Ela me tira o sono de verdade, diz ele. Não é que eu fique pensando nela; o que não consigo é dormir a seu lado, porque ela me tira o sono, como um imã que arranca meus sonhos, rouba meus sonhos. Meu irmão sempre pinta com ideias esquisitas, mas, desta vez, além disso, vejo que ele não está bem, parece paranoico, meio delirante e esmagado pelo mundo. Diz ele: temos 15 anos de casados e isso nunca tinha me acontecido. Justo agora, que estamos bem, ambos com trabalho estável, recuperando o carinho na cama, e que Maia está feliz na escola com as amigas, nós três com saúde... Tudo está o melhor impossível, e aparece isso.

Máscara para dormir; meu irmão não consegue pegar no sono por causa de Teresa - Gabriel Cabral - 21.mar.17/Folhapress

É como se Teresa fosse um reator que absorvesse todo meu descanso, diz ele. Eu me deito esgotado a seu lado e percebo que ela dorme imediatamente. Ela desmaia com seu sono e vai tirando o meu. Ao lado dela, fico assim, alerta por horas e horas, pensando em mil coisas negativas ao mesmo tempo, com imagens no cérebro que se sobrepõem umas às outras numa velocidade de circuito elétrico, com ruídos na cabeça que parecem estalos, tipo curtos-circuitos cerebrais, como se alguma coisa encostasse num cabo de alta tensão. Ela dorme sem despertar, 12 horas, das nove da noite às nove da manhã. É muito, digo a meu irmão. Claro que é, ele responde, são horas minhas! É meu sono roubado!

Digo que ele pode tomar algo para dormir, que ele precisa descansar. Então ele começa a elaborar teorias conspiratórias sobre os laboratórios norte-americanos, que querem formatar nossa cabeça para que a inteligência artificial nos domine completamente, que não devemos tomar nada químico, senão nosso sistema neural será modificado...

Meu irmão anda feito um fio desencapado, como eu nunca tinha visto. Não consigo acalmá-lo. Ele treme a xícara de café, olha ao seu redor a todo momento. O barulho de uma bandeja que cai no chão do bar o sobressalta. Com todo o cuidado, tento lhe dizer que ele está delirando, que pare de tomar café, que faça exercícios físicos. Eu faço exercícios, ele grita, fico esgotado, mas me deito ao lado dela e não durmo. Como isso se explica, hein? Ele quer ir embora. Tenta pagar a conta, os documentos e os cartões caem da carteira; ele recolhe tudo no chão balbuciando alguma coisa que não entendo e sai sem me dar tchau.

Fico preocupado com ele, pensando em Teresa como um parasita que rouba o descanso alheio. Será que ela rouba os sonhos também? Será que ela está sonhando os sonhos do meu irmão?

Dias depois me telefona Teresa, desesperada. Me diz, chorando, que meu irmão brigou no trabalho; ela o viu tão enlouquecido entrando e saindo de casa, que pôs o localizador no celular para seguir seus deslocamentos. Nunca fiz isso, mas estava muito preocupada, e agora vejo que ele está num hotel aqui perto. Tenho medo de que ele se mate, venha comigo buscá-lo, diz ela. Eu duvido. Chego a pensar que meu irmão pode estar com outra mulher. Tudo me cheira mal. Tomo um táxi.

Encontro Teresa no saguão do hotel. Está falando com o concierge. Ninguém responde, diz o homem com o tubo do telefone na mão. Vou subir, diz Teresa. É proibido, senhora. Ele vai se matar, diz ela desesperada, vai se atirar pela janela. Por favor, nos ajude, digo ao concierge. Ele busca um cartão e sobe conosco no elevador. Batemos na porta, ninguém responde. O concierge encosta o cartão e a porta se destrava. Deixem que eu entre, digo. Com o coração na boca, avanço devagar. Não vejo nada na escuridão. Entreabro a cortina e vejo meu irmão na cama, sozinho. Ele ergue a cabeça. O que você está fazendo aqui?, reage ele. O que você está fazendo aqui? E com uma voz serena e quase sussurrada, me responde: Estou dormindo, irmãozinho, estou dormindo.

tradução: Livia Deorsola

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