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Leandro Beguoci é diretor editorial de Nova Escola (novaescola.org.br). Ele explica sobre o que funciona (e o que não funciona) na educação brasileira.

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Descrição de chapéu Nova Escola Rio de Janeiro

As crianças da Maré serão as nossas últimas testemunhas

Com 'caveirão aéreo', perdemos a sensibilidade para o horror cotidiano

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​Daqui a uns 40 anos, quando a crônica do Brasil de 2019 for escrita, as cartas das crianças do Complexo da Maré serão o testemunho mais franco da nossa loucura coletiva. 

O jornal O Globo publicou as mensagens que estudantes da região enviaram aos Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O objetivo era sensibilizar os magistrados. Uma ACP (Ação Civil Pública) regulamentava as incursões policiais na comunidade, mas ela foi suspensa dois meses atrás. Os moradores querem que ela volte a vigorar.

Se você anda lendo notícias de verdade, provavelmente soube do “caveirão aéreo”, os helicópteros dos quais a polícia do Rio atira nas favelas. O argumento usado pelo governo é de o combate ao crime. Porém, mesmo que essa fosse uma ação razoável (não acho que seja), ela é tremendamente mal executada. A ACP, aliás, listava algumas regras razoáveis para que as incursões funcionassem com alguma ordem. No entanto, com a suspensão da medida, o faroeste aéreo voltou. As cartas das crianças deixam isso claro. 

"Boa tarde. Eu queria que parassem as operações porque muitas famílias serão mortas. Agora, eu estou sem quarto porque vocês destruíram na operação. Todo mundo na minha escola chora, meu irmão morreu por causa dos policiais e eles bateram no meu primo. [...] Muito obrigado por ter lido minha carta”.

Segundo dados da Unicef, o Brasil é o país que mais mata crianças e adolescentes no mundo, em números absolutos. Reportagem recente da Nova Escola conta essa história: "Entre 2007 e 2017, mais de 100 mil adolescentes entre 10 e 19 anos foram assassinados. A maioria dessas vítimas são meninos, negros, de baixa renda e moradores da periferia”. O perfil é semelhante ao de muitos estudantes da Maré. 

O que acontece no Rio e em muitas comunidades pobres Brasil afora é um caso de violência dupla, em curta e longa duração. No presente imediato, temos a barbárie pura. Crianças e adolescentes têm as casas destruídas pelo crime ou pelo Estado. No futuro próximo, esses meninos e meninas abandonam a escola porque ou o caminho é perigoso ou a sala de aula perde o sentido. Toda escola é uma promessa de uma vida melhor anos adiante. Se não existe perspectiva, não existe educação. 

Continua a reportagem da Nova Escola: "O acesso e a permanência na escola estão ligados a fatores internos, como as relações entre as pessoas, e externos, como o entorno e a vulnerabilidade das famílias. No Brasil, nem sempre o entorno da escola é considerado seguro, e não tem como a escola ficar imune a essa violência diária. Quando pensamos em uma escola que protege seus estudantes, também precisamos olhar, por exemplo, para o caminho que o estudante faz até a escola”. 

As políticas públicas de educação não podem ignorar as nossas zonas de conflito. Se nós queremos que a escola seja para todos, precisamos garantir que as crianças tenham condições de estudar. Caso contrário, daqui a alguns anos seremos lembrados como a geração que naturalizou o extermínio de adolescentes. Seremos recordados como os soviéticos imortalizados no livro “As últimas testemunhas”, da jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch

Neste livro, tão próximo, a autora colhe memórias de crianças e adolescentes que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial na antiga União Soviética. São retratos de pessoas bem jovens que perderam a família e a memória, a casa e a perna, a dignidade e a esperança. Recomendo a leitura. Parece que faz muito tempo - mas é hoje. 

Afinal, imersos no cotidiano, perdemos a dimensão do momento em que vivemos. Talvez a carta das crianças da Maré e o livro de Svetlana nos ajudem a tirar, ao menos por alguns instantes, desse estado de sonambulismo coletivo. Não há futuro num país em que a escola precisa colocar uma placa no teto pedindo que o helicóptero não atire nela. 

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