Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
'Jogai por nós'
Acredite se quiser, caro leitor: autodeclarados arautos da ultramegapós-modernidade linguística dizem que a escola não deveria mais ensinar a segunda pessoa, porque ela "morreu". Acredite: isso está em livros que discutem política linguística, que pregam outras incríveis bobagens, como a supressão do pretérito mais-que-perfeito (também "morto", segundo esses gênios).
De fato, a segunda do plural ("vós") morreu na oralidade; a do singular ("tu") continua viva, com características que variam de acordo com a região do país.
Se a segunda do plural de fato morreu na oralidade, não seria mesmo o caso de bani-la dos livros de português? Não e não, caro leitor. Só em cérebros e almas míopes podem medrar e grassar ideias desse jaez. O ensino e o estudo da língua não se fazem só com o que é comum na oralidade, na novela da vez etc.
No caso da segunda do plural, é primário lembrar que boa parte dos brasileiros são religiosos e que nos textos ligados ao tema o predomínio da segunda do plural é mais do que evidente ("...que [vós] estais nos céus..."; "Bendita sois vós entre..."). Também é primário lembrar que em boa parte da nossa literatura clássica abundam textos escritos na segunda do plural: "Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento aos céus" (Machado de Assis).
Mesmo nos escritos de hoje não é raro o "vós": "Transformai (vós) as velhas formas..." (Gilberto Gil); "Se vós não sereis minha, vós não sereis de mais..." (Chico Buarque).
Pois bem. Sabe o que é que se lê no Itaquerão, nos corredores que os jogadores do Corinthians percorrem para chegar ao gramado? Simplesmente isto: "Jogai por nós". O que é "jogai"? É a segunda pessoa do plural (vós) do imperativo afirmativo do verbo "jogar". Como se sabe, o imperativo é o modo verbal da ordem, do pedido, da súplica, do rogo. Em "Perdoai as nossas ofensas", os fiéis pedem ao Criador que lhes perdoe as ofensas perpetradas.
Em que pessoa os fiéis se dirigem ao Criador? Na segunda do plural ("vós"), que, nesse caso, assume tom supremo, dedicado a Deus e a algumas divindades ou santidades.
Como é mesmo que se formam as segundas pessoas ("tu" e "vós") do imperativo afirmativo culto? Elimina-se o "s" final da forma correspondente do presente do indicativo. Se as duas segundas pessoas do presente do indicativo de "jogar" são "tu jogas" e "vós jogais", no imperativo afirmativo as formas correspondentes são "joga" (tu) e "jogai" (vós). O único verbo que não segue esse modelo é "ser", que tem formas autônomas: "sê" (tu) e "sede" (vós): "Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes" (Fernando Pessoa).
No caso da frase corintiana, é evidente a vontade do criador da mensagem de dar tom sagrado ao que se refere à paixão do bando de loucos pelo seu time. E qual foi a forma escolhida pelo criador da mensagem? É claro que, a despeito do ridículo delírio dos gênios da ultramegapós-modernidade linguística, a forma escolhida foi a "morta", ou seja, a segunda pessoa do plural. Experimente trocá-la, nesse caso, pela mais usada hoje em dia ("Joguem por nós"). Consegue-se o mesmo efeito? Nem com reza braba.
Como se vê, qualquer tentativa de ultrassabichões de definir o que é vivo e o que já morreu na língua pode esbarrar no ridículo. É isso.
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