Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
Deus? Que nada! Viva o Diabo!
No último domingo, na Câmara Federal, foram tantas as referências a Deus que me lembrei de "A Igreja do Diabo", obra-prima de Machado de Assis. Publicado há 132 anos, o texto, intemporal, assim começa: "Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos. (...) Vivia (...) dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja?".
Em seguida, o Diabo, agora em primeira pessoa ("Terei a minha missa, com vinho e pão à farta..."), termina a sua lucubração lembrando-se de "ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo".
Um parêntese: há muito tempo a escola não ensina as variedades clássicas da língua, o que pode fazer muita gente perder detalhes fundamentais para a compreensão dessas obras. Em "A Igreja do Diabo", é fundamental perceber, por exemplo, que o Diabo dá a Deus a segunda do plural ("vós"), mas recebe dele a segunda do singular ("tu"), o que deixa clara a hierarquia entre Deus e o Diabo.
Essa percepção muitas vezes exige conhecimento de flexões verbais que não fazem parte da linguagem hodierna, o que não as torna indignas de conhecimento e estudo.
"Explica-te", diz Deus ao Diabo, que assim responde: "Senhor, (...) permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai...". Em "explica-te", temos a segunda do singular ("tu") do imperativo afirmativo clássico, que resulta do corte do "s" final da respectiva forma do presente do indicativo; em "permiti", "recolhei", "dai" e "mandai" (que o Diabo diz a Deus), também temos o imperativo afirmativo, mas da segunda do plural ("vós"), que resulta de processo análogo. Com "permiti", o Diabo não diz que permitiu; ele pede a Deus que lhe permita.
Bem, o Diabo desce à terra, põe-se a trabalhar e logo consegue o seu intento. "Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza... (...) Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. (...) A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. (...) A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?".
"Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes." Isso assombrou o Diabo, que foi a Deus para "conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno". E Deus: "Que queres tu, meu pobre Diabo? (...) É a eterna contradição humana".
O Diabo não teria esse desgosto se tivesse construído a sua igreja na capital de certo país... Os seus fiéis não teriam nenhuma recaída. É isso.
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