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Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.
Médicos Sem Fronteiras: crise da imigração na Europa e a próxima epidemia de ebola
A estratégia anunciada nesta semana pela União Europeia, de ação militar contra os traficantes e barcos que trazem imigrantes da África, vai sair pela culatra.
Essa é a opinião de Jérôme Oberreit, secretário-geral da Médicos Sem Fronteiras, entidade que acaba de enviar dois barcos para ajudar no resgate dos imigrantes que tentam cruzar o Mediterrâneo para chegar à Europa.
"No momento, bloquear a rota pelo mar vai levar essas pessoas a usarem alguma outra rota ainda mais perigosa para entrar na Europa; ao deter os traficantes, estamos lidando apenas com os sintomas da crise da imigração", disse à Folha Oberreit.
Pelo menos 1.800 pessoas morreram tentando cruzar o Mediterrâneo desde o começo do ano. Só nas últimas 48 horas, quase 3.600 imigrantes foram resgatados de barcos superlotados vindos da África. A maioria dos que tentam entrar ilegalmente na Europa são sírios, eritreus, somalis e nigerianos, trazidos por traficantes da Líbia.
Com a Líbia mergulhada no caos, os traficantes de pessoas têm agido livremente e o número de imigrantes desembarcando na Itália em 2015 deve chegar a 200 mil em 2015, segundo o governo italiano.
A UE anunciou nesta semana plano para expandir as missões de busca e resgate ao mesmo tempo em que estabelece uma operação para "sistematicamente identificar, capturar e destruir" barcos usados por traficantes.
Além disso, o governo europeu propõe que os Estados-membros concedam asilo a 20 mil pessoas a mais e quer estabelecer cotas de recebimento de imigrantes para cada país, em vez de sobrecarregar Itália e Grécia.
Mas o Reino Unido já afirmou que não vai aceitar.
Abaixo, trechos da entrevista que Oberreit concedeu à Folha, falando sobre imigração, ebola e crises humanitárias.
*
A MSF tem criticado a abordagem da União Europeia para lidar com a crise de imigração...
Ao simplesmente deter os traficantes (de pessoas) só lidamos com os sintomas (da crise). O motivo para o enorme aumento no número de pessoas indo para Europa são guerras e consequente deslocamento forçado de populações, como é o caso da Síria e Somália. Não víamos um número tão grande de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, então não é surpreendente que tantas pessoas queiram buscar asilo na Europa, isso é legítimo. Não é construindo um muro ao redor da Eureopa que vamos resolver esse problema. Essas pessoas estão fugindo, de forma legítima, de uma situação desesperadora. No momento, bloquear a rota pelo mar vai levar essas pessoas a usarem alguma outra rota ainda mais perigosa para entrar na Europa. Precisamos é lidar com o sistema de asilo. Hoje, países vizinhos a nações em conflito, como Jordânia e Líbano, absorvem mais de 80% dos refugiados. Esses são países pobres ou de renda média que têm pouquíssimos recursos. A UE não está fazendo sua parte para lidar com essa crise gigantesca e ajudar a receber esses indivíduos; quando chegam à Europa, esses refugiados são tratados de forma inaceitável nos centros de detenção, e são mulheres e crianças que não cometeram nenhum crime
O sr. acha que as instituições e governos aprenderam com os erros cometidos no ano passado, durante a epidemia de ebola?
Ainda é difícil dizer se aprendemos com os erros cometidos. Ainda vivemos uma epidemia de ebola -a Libéria não tem mais o vírus, mas ainda há ebola em Serra Leoa e Guiné. É muito cedo para saber. Mas está claro que a resposta ao ebola foi um fracasso, e não por causa de falta de recursos, mas sim por falta de vontade política. Nós alertamos em março de 2015 que havia uma situação e que era muito maior do que qualquer uma que já havíamos visto. As reações foram: não exagerem, não vamos criar pânico. No fim, houve mobilização, mas demorou demais e não tinha a flexibilidade necessária. Nós fizemos tudo o que podíamos, mas também passamos por questionamentos internos.
Que tipo de autocrítica vocês fazem em relação à forma pela qual responderam à epidemia?
Em termos de mobilização, será que fomos rápidos o suficiente? Foi uma situação terrível para nossa equipe, até para os veteranos muito acostumados a guerras, eles perdiam 55% dos pacientes. No pico da epidemia, precisavam recusar pacientes, mesmo sabendo que essas pessoas iam propagar o ebola em suas famílias. Mas se aceitássemos todos os pacientes, nós criaríamos mais risco para nossa equipe e sua habilidade de tratar os pacientes que já estavam lá. Estávamos sobrecarregados; 28 integrantes do MSF se contaminaram. A maioria eram funcionários locais, que podem ter se contaminado em suas comunidades. Mas mesmo assim. Perdemos 14 entre 28 dos nossos colegas infectados.Foi a primeira vez na história do MSF que tivemos mortes por ebola, e olha que já lidamos com várias epidemias do vírus. Mas eu me pergunto: é normal, no mundo de hoje, globalizado, com tantas tecnologias, que precisemos depender de uma ONG privada para responder a uma epidemia como a do ebola? Nós tratamos 35% de todos os casos de ebola....
Agora que a Libéria está livre do ebola e houve grande redução na contaminação em Serra Leoa e Guiné, o sr. teme que as pessoas voltem a negligenciar a pesquisa de medicamentos contra o vírus?
Não podemos esquecer que antes de a epidemia explodir, antes de haver o medo de o ebola chegar ao Ocidente, antes que estrangeiros contaminados fossem repatriados para seus países, ninguém estava prestando atenção no ebola. Só quando a possibilidade de a doença chegar no Ocidente se tornou realidade é que começaram a se envolver e colocar recursos em pesquisa. É a mesma coisa com pesquisa e desenvolvimento de drogas em geral - hoje, P&D negligencia totalmente áreas em que há enorme necessidade, mas pouco interesse comercial, como novas drogas para tuberculose resistente e vacinas.
Sei que é impossível prever, mas você acredita que haverá uma nova epidemia de ebola em um futuro próximo?
De fato, não posso fazer previsões sobre o ebola ou o próximo (vírus). Mas está claro que, se não houver uma reforma completa no mecanismo de alerta de epidemias e mobilização de recursos, teremos de novo um enorme problema.
Quais as principais crises humanitárias que estão sendo ignoradas hoje em dia?
A maioria das crises recebe um pouco de atenção e depois saem do radar. A mais óbvia é a da República Centro-Africana, que estava na cabeça das pessoas há um ano e agora sumiu. Essa crise está longe de ser resolvida. O Sudão do Sul hoje vive grandes índices de conflito. Um dos nossos hospitais teve de ser evacuado e parar com os atendimentos. Tivemos de sair da Somália por causa da falta de segurança. A situação dos refugiados somalis dentro da Somália e no Quênia e Etiópia é complexa e desesperadora. Quem está se preocupando com essas 500 mil pessoas vivendo em condições desesperadoras? Síria, por exemplo, não é só o conflito, nós não nos damos conta da situação das milhares de pessoas que tiveram de deixar suas casas.
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