Patrícia Campos Mello

Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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Patrícia Campos Mello
Descrição de chapéu Governo Trump

Para Trump, direitos humanos não valem para a Arábia Saudita

Quando se trata de ditaduras que não compram quantidades astronômicas de armas, o critério é outro

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante jantar de Ação de Graças - Susan Walsh/AP

Uma das principais críticas à política externa americana é que os Estados Unidos usam o tema dos direitos humanos de forma seletiva. Se o país for aliado, o desrespeito aos direitos humanos pode ser relevado; em uma nação rival, as violações justificam intervenções externas.

Os dois pesos e duas medidas dos Estados Unidos nunca ficaram tão gritantes como agora.

“Se nós seguirmos certos padrões, não poderemos ser aliados de quase nenhum país”, disse nesta quinta-feira (22) o presidente americano, Donald Trump.

Ele se referia à Arábia Saudita e ao príncipe regente, Mohammad bin Salman. Funcionários sauditas assassinaram e esquartejaram o jornalista dissidente Jamal Khashoggi dentro do consulado da Arábia Saudita em Istambul.

Depois de uma patética tentativa de acobertamento, o governo saudita acabou admitindo o crime, mas afirmou que não havia envolvimento de MbS, como é conhecido o príncipe regente.

Já a CIA discorda –a agência de inteligência afirmou que há indícios conclusivos de que MbS não apenas sabia do crime como ordenou o assassinato.

Indagado sobre quem deveria ser responsabilizado pela morte do jornalista, Trump afirmou: “Talvez o mundo devesse ser responsabilizado, porque o mundo é um lugar muito, muito cruel”, disse, passando o pano para MbS.

A Alemanha não apenas impôs sanções contra 17 sauditas implicados no assassinato como baniu todas as vendas de armas à monarquia do Golfo, até aquelas que já haviam embarcado.

Mas, para Trump, nada disso justifica ações mais enérgicas contra os sauditas. Ele afirma que não há indícios fortes sobre o envolvimento de MbS, contrariando a própria CIA.

E invoca seu mantra “América em primeiro lugar” para rejeitar um possível veto à venda de armas para os sauditas.

Segundo Trump, os EUA perderiam as vendas para russos e chineses.
 
 “As pessoas realmente querem abrir mão de centenas de milhares de empregos?” indagou Trump, recorrendo a sua proverbial hipérbole fake. “Eles têm sido ótimos aliados, criam uma quantidade tremenda de riqueza e empregos com suas compras e , muito importante, mantêm os preços do petróleo baixos”, completou o republicano.

Como disse Fred Ryan em coluna no Washington Post:

“Um recado claro e perigoso foi dado aos tiranos  do mundo: se você mostrar ao presidente dos EUA dinheiro suficiente, você pode literalmente sair impune após cometer um assassinato”. Segundo Ryan, as ações de Trump “põem os valores monetários das transações comerciais acima dos valores americanos de respeito à liberdade e aos direitos humanos”.
 
Não custa lembrar que esse mesmo príncipe regente esteve por trás da escalada militar da Arábia Saudita no Iêmen, que já provocou dezenas de milhares de mortes, muitas por inanição; coordenou o sequestro do primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, e o embargo contra o Catar.

Agora, imaginem, só por um momento, que um líder do Irã tivesse ordenado o assassinato de um jornalista iraniano dentro do consulado do país em Istambul. Os EUA ficariam mudos em relação à violação de direitos humanos? Invocariam os preços baixos do petróleo como justificativa para sua omissão? Ora, se realmente quisesse manter baixos os preços do petróleo, Trump não teria rasgado o acordo nuclear com o Irã, que levou milhões de barris diários serem removidos do mercado, por causa da reimposição de sanções.

O príncipe saudita Mohammed bin Salman durante evento em Riad - Reuters

É, senhores, se o ditador se oferecer para comprar uma montanha de armas dos EUA, talvez não seja tão mau assassinar dissidentes, apedrejar mulheres, etc. Direitos humanos, só quando interessa.

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