Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Matando a Pax Americana

A guerra comercial de Trump vai além da economia

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OK, eles não deveriam ter começado a guerra comercial antes que eu voltasse das férias. E realmente tenho muitos quilômetros a cobrir e muitas montanhas a escalar para tratar desse assunto com o tempo necessário ou de modo mais extenso.

Mas já que estou acomodado a uma mesa de calçada, com um café e um croissant à minha frente, achei que valia a pena dedicar alguns minutos a duas concepções equivocadas que acredito que estejam colorindo a discussão sobre o conflito comercial.

E não estou falando, aliás, das concepções equivocadas do presidente Trump. Até onde vejo, ele não está certo quanto a coisa alguma, em termos de política comercial. Não sabe como as tarifas funcionam, ou quem as paga. Não compreende o que significam os desequilíbrios no comércio bilateral, ou o que os causa.

A ideia dele sobre o comércio internacional é a de que se trata de um jogo no qual alguém ganha e alguém perde, o que contraria tudo o que aprendemos nos dois últimos séculos. E se existe alguma (mínima) coerência nas demandas que ele faz à China, são demandas que a China não pode/não vai atender.

Mas os críticos de Trump, embora sejam muito mais precisos do que ele, também entendem algumas coisas de modo incorreto, ou no mínimo superestimam alguns riscos e subestimam outros. Por um lado, os custos da guerra comercial em curto prazo tendem a ser superestimados. Por outro, as consequências em longo prazo daquilo que está acontecendo são maiores do que a maioria das pessoas parece perceber.

Em curto prazo, uma tarifa é um imposto. Ponto. As consequências macroeconômicas de uma tarifa deveriam, portanto, ser vistas como comparáveis às consequências macroeconômicas de qualquer aumento de imposto.

É fato que esse aumento de imposto é mais regressivo do que, digamos, um imposto sobre as rendas altas ou um imposto sobre o patrimônio. Isso significa que ele recai sobre pessoas que serão forçadas a cortar seus gastos e, portanto, é provável que tenha um impacto negativo maior sobre a economia, em termos concretos, do que o impacto positivo do corte de impostos de 2017.

Mas ainda assim, continuamos a falar de um aumento de impostos equivalente a uma fração de ponto percentual do Produto Interno Bruto (PIB).

Isso significa que é difícil justificar afirmações de que a guerra comercial, ao menos nas circunstâncias atuais, causará uma recessão mundial.

Se a guerra comercial se estender não só a todas as importações da China, mas também a produtos importados da Europa e de outras parte do mundo, a coisa pode equivaler a uma política fiscal contrativa da ordem de 2% do PIB; US$ 200 bilhões aqui, US$ 200 bilhões ali, e logo estaremos falando de dinheiro real.

Isso poderia mesmo acontecer: Trump imagina que está vencendo, e pode estender suas ações da China aos carros europeus, e assim por diante. Mas ainda não chegamos a esse ponto.

Mas a perspectiva de retaliação estrangeira não muda o quadro?

Na verdade, o que a retaliação estrangeira faz é impedir que as tarifas sejam menos ruins do que um aumento simples de impostos.

Quando um grande país, como os Estados Unidos, impõe tarifas, um dos efeitos —caso não enfrentemos retaliação estrangeira— é um aumento nos preços dos produtos americanos exportados, quer pela alta do dólar, quer por recursos estarem sendo transferidos do setor exportador para setores que concorrem com as importações.

Se nada mais variar, esse aumento de preços é vantajoso para os Estados Unidos (ainda que não para setores voltados à exportação, como a agricultura). E esse efeito sobre os "termos do comércio" pode mitigar ou até reverter as perdas mais amplas causadas pela distorção econômica criada pelas tarifas.

Se (quando) os estrangeiros retaliarem, no entanto, o efeito dos termos do comércio começa a se dissipar e estamos de volta à tarifa como um imposto sobre os consumidores do país.

Talvez o ponto mais sério aqui seja que costuma existir alguma dose de misticismo sobre a política comercial, por ela ser global e por envolver um dos insights mais importantes sobre a economia, a teoria da vantagem competitiva.

Isso dá à política comercial uma importância mental desproporcional à sua importância econômica. Sim, a política comercial é importante; mas em termos econômicos estritos, ela não é mais importante que a política de saúde, a política fiscal ou as políticas públicas em geral.

Digo isso, aliás, de minha posição como economista cuja carreira profissional teve por foco a pesquisa sobre comércio e finanças internacionais. Em geral, as pessoas que trabalham com essas questões tendem a lhes atribuir menor importância do que as pessoas que não as estudaram com tanta atenção.

Tudo isso, porém, se refere ao lado estritamente econômico da guerra comercial, que pode ser o aspecto menos importante do que está acontecendo. Porque a política comercial não gira apenas em torno da economia, mas da democracia e da paz.

Isso é óbvio e explícito na Europa, onde as origens da União Europeia estão na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, surgida no começo da década de 1950 —um tratado cujos benefícios econômicos, embora reais, eram de algum modo incidentais com relação ao propósito real do acordo: evitar futuras guerras entre a França e a Alemanha.

Participar da União Europeia sempre esteve condicionado à democratização —o que, aliás, é motivo para que a reação frouxa da União Europeia ao colapso da democracia na Hungria e, aparentemente, na Polônia, represente um imenso fracasso moral.

 

Nos Estados Unidos, esse efeito é mais implícito. Mas o registro histórico é bastante claro: o sistema de comércio internacional do pós-guerra surgiu da visão de Cordell Hull, secretário de Estado do presidente Franklin Roosevelt, que via conexões comerciais entre os países como uma maneira de promover a paz.

Esse sistema, em companhia dos acordos multilaterais e das regras de limitação da ação unilateral, foi desde o começo uma porção crucial da Pax Americana.

Sua importância para a ordem internacional do pós-guerra era tão grande quanto a do Fundo Monetário Internacional (FMI), criado para oferecer uma rede de segurança para os países que enfrentassem problemas em seu balanço de pagamentos; e, aliás, tão grande quanto a da Otan.

Assim, a guerra comercial de Trump deve, portanto, ser vista como parte indissociável de sua preferência por ditadores estrangeiros, falta de respeito por nossos aliados e evidente desdém pela democracia, no país e no exterior.

Mas você talvez esteja objetando: calma lá, a China não é um aliado e nem uma democracia, e de diversas maneiras é um mau agente no comercio mundial. Isso não constituiria um argumento razoável em favor de confrontar a China com relação às suas práticas econômicas?

Sim, constituiria —desde que as tarifas sobre a China fossem uma história isolada, ou, melhor ainda, desde que Trump estivesse montando uma aliança de nações para confrontar as políticas chinesas inaceitáveis.

Mas na verdade, Trump vem travando guerras comerciais contra quase todo mundo, ainda que em menor intensidade. Se você impõe tarifas à importação de aço canadense, sob o ridículo argumento de que o aço importado representa ameaça à segurança nacional, e ameaça fazer o mesmo com relação aos carros alemães, você com certeza não está montando uma coalizão estratégica para lidar com o mau comportamento da China.

O que o governo está de fato fazendo, em lugar disso, é demolir o que resta da Pax Americana.

Mas isso não seria inevitável, de todo modo?

É fato que o domínio econômico dos Estados Unidos sofreu erosão, com o tempo, não porque estejamos ficando mais pobres, mas porque o resto do mundo enriqueceu. Mas havia motivo para esperar que uma ordem internacional relativamente pacífica pudesse ser sustentada por uma aliança de potências democráticas.

E, de fato, até poucos anos atrás me parecia que era exatamente isso que estávamos vendo acontecer no sistema mundial de comércio, que estava em transição de uma hegemonia americana relativamente benigna para um condomínio comparavelmente benigno liderado pelos Estados Unidos e pela União Europeia.

A esta altura, porém, as coisas parecem muito mais sombrias. E o problema não é só Trump. E não é nem só Trump, mas brexit. Os europeus também estão provando ser uma grande decepção. Como afirmei, se eles nem conseguem lidar com figuras como Viktor Orban dentro de sua comunidade, não oferecerão o tipo de liderança de que o mundo precisa.

Mas se os europeus são fracos, Trump é maligno. Ele está trabalhando ativamente para fazer do mundo um lugar mais perigoso e menos democrático, e a guerra comercial é só uma manifestação dessa intenção.

E as consequências negativas futuras para os Estados Unidos e o mundo serão muitos mais graves do que somos capazes de capturar usando modelos econômicos sobre os efeitos das tarifas.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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