Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Política paranoica viraliza

Quando tudo é uma conspiração da mídia liberal

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Ainda não sabemos quanto dano o Covid-19 —a doença do coronavírus— causará, mas é razoável estarmos muito preocupados. Afinal, ele parece ser altamente transmissível, e provavelmente é muito mais letal que a gripe comum.

Mas não devemos nos preocupar, dizem analistas e organizações noticiosas de direita: é tudo um embuste, uma conspiração da mídia liberal para fazer Donald Trump parecer mau. Autoridades do governo e o próprio Trump repetiram suas afirmações.

Estas são loucas, é claro. Entre outras coisas, o Covid-19 é um fenômeno global, com surtos importantes que vão da Coreia do Sul à Itália. A mídia sul-coreana e a italiana também fazem parte da conspiração para pegar Trump?

Essa loucura, entretanto, era totalmente previsível para qualquer um que estivesse acompanhando a política de direita. É apenas a mais recente batalha em uma antiga guerra à verdade, à própria ideia de que existe uma inconveniente realidade objetiva.

Retrato de Donald Trump com microfones na altura de sua barriga
Donald Trump durante entrevista à jornalistas na Casa Branca em Washington, Estados Unidos - Leah Millis - 2.mar.2020/Reuters

No caso do Covid-19, os suspeitos habituais estavam, em parte, envolvidos em projeção. Afinal, eles mesmos participaram de um esforço conjunto para transformar o surto de ebola em 2014 em arma política contra Barack Obama, cuja resposta foi realmente inteligente e eficaz. Aliás, depois daquele surto, o governo Obama implementou medidas para lidar com futuras epidemias —todas as quais Trump eliminou.

Mas, como eu disse, negar o vírus é apenas a batalha mais recente em uma antiga guerra contra a verdade.

Lembrem-se, os conservadores passaram décadas negando a realidade da mudança climática, insistindo que é uma farsa gigantesca perpetrada por uma vasta conspiração científica internacional. E conforme se multiplicam os sinais da catástrofe climática, dos incêndios na Austrália à seca na Califórnia, a negação climática só ganhou força no Partido Republicano. Na véspera das eleições de meio de mandato em 2018, uma pesquisa descobriu que 73% dos senadores republicanos negavam o consenso científico de que está acontecendo uma mudança climática causada pelo homem.

Ou considere quantos na direita reagiram depois que suas terríveis previsões de hiperinflação sob Obama não se concretizaram —não admitindo que estavam errados, mas insistindo que os números haviam sido manipulados. E não estou falando de figuras secundárias, mas de pessoas que os conservadores consideram importantes intelectuais.

Agora, esse tipo de teoria conspiratória não é território exclusivo da direita. Você pode, por exemplo, ver algumas tendências semelhantes no time de Bernie Sanders. Foi desanimador ver um assessor graduado de Sanders declarar que todos os que discordam das propostas de taxar a riqueza —o que, aliás, eu apoio— "são os tipos de grupos e acadêmicos que são financiados pelos poderes constituídos, o establishment, a classe bilionária".

O negócio é que, enquanto a corrupção do dinheiro grosso realmente acontece —é a força principal que mantém vivas as ideias zumbis—, ela não está por trás de todas as disputas políticas. Às vezes analistas sérios simplesmente discordam. E é preocupante que alguns da equipe de Sanders não consigam ver a diferença.

Mas a direita está onde o estilo paranoico anda de mãos dadas com o poder real, e pode causar dano real. De fato, pode ser mortal.

Isso é óbvio quando se trata da mudança climática, onde a negação alimentada pela teoria da conspiração tem um grande papel em bloquear a ação, e portanto representa uma ameaça existencial à civilização.

De início, não estava claro se a paranoia da direita também estava prejudicando a reação ao Covid-19. Mas reportagens recentes deixam claro que um motivo importante pelo qual os EUA estão muito atrás de outros países nos testes do coronavírus —um passo essencial para conter sua disseminação— é que Trump não quis acreditar que havia uma crise. Afinal, reconhecer que enfrentamos um problema sério poderia prejudicar seu amado mercado de ações.

Esse desejo de minimizar os riscos ao mercado distorceu toda a reação do governo ao surto. Alguns traçaram paralelos com a escalada para a guerra no Iraque, quando o evidente desejo do governo Bush de ter uma explicação racional para a guerra desviou a informação no sentido de ver armas de destruição em massa inexistentes.

No caso de hoje, a análise foi desviada no sentido de não ver uma ameaça —e o desvio foi permitido, em parte, por afirmações de que toda a evidência de que havia de fato uma ameaça era uma farsa cometida pela mídia noticiosa liberal.

E há pouca evidência, mesmo hoje, de que o governo Trump esteja levando a sério a realidade do Covid-19. Enquanto o governo finalmente pede mais verbas para combater a doença, as somas que sugeriu parecem grotescamente inadequadas.

Os aliados de Trump já estão denunciando seus críticos por "politizar" o surto; Donald Trump Jr. acusou os democratas de querer que milhões de pessoas morram. Mas na verdade foi Trump quem politizou o vírus, ao minimizar o perigo.

É verdade que os democratas estão criticando os atos de Trump, sugerindo que sua recusa em aceitar a responsabilidade por... bem, qualquer coisa está colocando os Estados Unidos em risco. Na última vez que verifiquei, entretanto, ainda era legítimo criticar os líderes americanos.

Mas esse é o negócio sobre a paranoia política: você vê até a crítica mais normal como parte de uma conspiração sinistra. E o fato de que esse tipo de paranoia infectou nosso partido governante é mais assustador que qualquer virus.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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