Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Paul Krugman

2020 foi o ano em que o reaganismo morreu

Em tempos de crise, a ajuda do governo às pessoas em dificuldades é uma coisa boa, não só para quem a recebe

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Talvez tenham sido as aparências. É difícil saber que aspectos da realidade entram na bolha de Donald Trump, que não para de encolher —e fico feliz em dizer que depois de 20 de janeiro não precisaremos mais nos importar com o que passa por sua mente nada bonita—, mas é possível que ele tenha tomado consciência de como ele apareceu, jogando golfe enquanto milhões de famílias desesperadas perdiam seus benefícios de desemprego.

Seja qual for o motivo, no domingo (27) ele finalmente assinou uma lei de alívio econômico que, entre outras coisas, estenderá esses benefícios por alguns meses. E não foram só os desempregados que suspiraram aliviados.

O mercado de futuros —que não são uma medida de sucesso econômico, mas quase— subiu. O Goldman Sachs reviu para cima sua previsão de crescimento econômico para 2021.

Assim, este ano está terminando com uma segunda demonstração da lição que deveríamos ter aprendido na primavera: em tempos de crise, a ajuda do governo às pessoas em dificuldades é uma coisa boa, não só para quem a recebe, mas para o país como um todo. Ou, colocando de modo um pouco diferente, 2020 foi o ano em que o reaganismo morreu.

O que eu quero dizer com reaganismo vai além da economia vodu, a afirmação de que os cortes de impostos têm um poder mágico e podem resolver todos os problemas. Afinal, ninguém acredita nessa afirmação além de um punhado de charlatães e iludidos, mais o Partido Republicano inteiro.

Não, eu quero dizer algo mais geral —a crença em que a ajuda aos necessitados sempre sai pela culatra, que a única maneira de melhorar a vida das pessoas comuns é tornar os ricos mais ricos e esperar que os benefícios escorram para baixo. Essa ideia estava resumida no famoso ditado de Ronald Reagan de que as palavras mais aterrorizantes são "Eu sou do governo e vim ajudar".

Bem, em 2020 o governo veio ajudar —e ajudou.

O ex-presidente americano Ronald Reagan, que dirigiu o país entre 1981 e 1989, faz discurso durante inauguração da biblioteca que leva seu nome na Califórnia, em 1991. - AFP

É verdade, algumas pessoas defenderam políticas de efeito cascata mesmo diante da pandemia. Trump pressionou diversas vezes por cortes dos impostos sobre folhas de pagamento, que por definição não fariam nada para ajudar diretamente os desempregados, tentando até (sem sucesso) cortar a cobrança de impostos por meio de ação executiva.

Ah, e o novo pacote de recuperação inclui uma dedução fiscal de bilhões de dólares para refeições de negócios, como se almoços com três martínis fossem a resposta para uma depressão pandêmica.

A hostilidade no estilo Reagan a ajudar pessoas necessitadas persistiu. Alguns políticos e economistas continuaram insistindo, apesar das evidências, que a ajuda aos trabalhadores desempregados estava de fato causando desemprego, ao tornar os trabalhadores avessos a aceitar ofertas de trabalho.

De modo geral, porém —e de forma um tanto chocante—, a política econômica dos Estados Unidos na verdade respondeu bastante bem às necessidades reais de um país forçado ao lockdown pelo vírus mortal.

A ajuda aos desempregados e os empréstimos a empresas que foram perdoados se fossem usados para preservar as folhas de pagamento limitaram o sofrimento. Cheques diretos enviados à maioria dos adultos não foram a política mais bem orientada da história, mas aumentaram as rendas pessoais.

Toda essa intervenção de governo grande funcionou. Apesar de um lockdown que eliminou temporariamente 22 milhões de empregos, a pobreza na verdade caiu enquanto a assistência durou.

E não houve um lado negativo visível. Como já sugeri, não há indício de que ajudar os desempregados dissuadiu os trabalhadores de aceitar empregos quando estiveram disponíveis. De maneira mais notável, o surto de emprego de abril a julho, em que 9 milhões de americanos voltaram ao trabalho, ocorreu enquanto os benefícios reforçados ainda estavam em vigor.

A enorme dívida do governo também não teve as terríveis consequências que os críticos do deficit sempre preveem. As taxas de juros continuaram baixas, enquanto a inflação ficou estacionada.

Então o governo veio ajudar, e realmente ajudou. O único problema foi que ele cortou a ajuda cedo demais. O auxílio extraordinário deveria ter continuado enquanto o coronavírus estivesse à solta —fato implicitamente reconhecido pela disposição bipartidária a aprovar um segundo pacote de ajuda, e afinal a disposição sob resmungos de Trump a assinar essa lei.

De fato, parte da assistência que demos em 2020 deveria continuar mesmo depois que tenhamos vacinação generalizada. O que deveríamos ter aprendido na última primavera é que programas de governo com verbas adequadas podem reduzir muito a pobreza. Por que esquecer essa lição assim que a pandemia terminar?

Agora, quando eu digo que o reaganismo morreu em 2020 não quero dizer que os suspeitos de sempre vão parar de usar os argumentos de sempre. A economia vodu está embutida muito profundamente no Partido Republicano moderno —e é útil demais para doadores bilionários que buscam cortes de impostos— para ser banida por fatos inconvenientes.

A oposição a ajudar os desempregados e os pobres nunca se baseou em evidências; sempre teve raízes em uma mistura de elitismo com hostilidade racial. Por isso, continuaremos ouvindo falar no poder milagroso dos cortes de impostos e nos males do Estado assistencialista.

Mas se o reaganismo continuará existindo, hoje, mais que antes, será um reaganismo zumbi —uma doutrina que deveria ter sido morta ao se chocar com a realidade, mesmo que continue se arrastando por aí, comendo o cérebro dos políticos.

Pois a lição de 2020 é que em uma crise, e em certa medida até em tempos mais calmos, o governo pode fazer muito para melhorar a vida das pessoas. E o que devemos temer mais é um governo que se recuse a fazer seu trabalho.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves ​

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