Pedro Hallal

É epidemiologista, professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil.

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Pedro Hallal

O moleque mentiroso

Esse nosso amigo desenvolveu uma compulsão por mentir que já era patológica. Todos sabiam, mas ninguém se dava ao trabalho de desmenti-lo

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Passei boa parte da minha infância e adolescência num clube social, que fica na frente da casa dos meus pais: o Clube Brilhante, cujo slogan é “um clube para todos os dias”. E eu honrava o slogan. Acordava cedo para ir ao clube diariamente. Lembro de passar manhãs fazendo campeonato de faltinhas, treinando futsal, jogando tênis, ou simplesmente conversando com os meus amigos e com os funcionários do clube. Logo depois da aula, já voltava para o clube e só chegava em casa para a janta.

Lá fiz muitos amigos que carrego até hoje. Até antes da pandemia, nos reuníamos religiosamente toda semana para bater uma bola e celebrar nossa amizade. Lembro de um episódio daquela época que marcou a minha vida. Fiz uma besteira no clube e recebi uma suspensão de sete dias. Cheguei em casa chorando, indignado, e falei com a minha mãe:

“Mãe, olha que absurdo, eles me suspenderam do Brilhante por sete dias”.

“Mas o que tu fez, Pedrinho”?

“Fizemos uma bagunça no salão da sinuca, e quando o funcionário veio nos advertir, esparramei toda a bagunça nas mesas”.

“Então faz assim, meu filho. A tua suspensão é de uma semana, né”?


“Isso, mãe, um absurdo”.

“Agora vais ficar duas semanas suspenso. Uma pelo clube, e outra por mim”.

Como toda turma de infância, tínhamos alguns personagens marcantes. Tinha aquele que não era muito chegado num banho, um que sabia todas as músicas de pagode e outro que quebrava uma raquete de tênis por mês. E como toda turma que se preza, também tinha o mentiroso.

O nosso amigo mentiroso começou com pequenas mentiras: “meu pai vai comprar o carro tal” ou “minha tia é amiga da atriz fulana de tal”. Com o passar dos tempos, as mentiras cresceram. Às vezes, ele mentia para outras pessoas na nossa frente, sobre situações que estávamos juntos e sabíamos que não eram verdades. Mas ele mentia mesmo assim. A partir da adolescência, a coisa piorou ainda mais. Esse nosso amigo desenvolveu uma compulsão por mentir que já era patológica. Todo mundo sabia das mentiras, mas ninguém se dava ao trabalho de desmenti-lo. Talvez os pais devessem ter punido as mentiras, sei lá.

Aqueles jovens hoje são todos adultos. Tem os que trabalham com vendas, os que seguiram carreira no esporte, os médicos, os professores, muitos casaram, alguns separaram, vários têm filhos. Temos lá no ginásio do clube uma faixa “Pipo Eterno”, em homenagem a um amigo que nos deixou cedo demais.

Lá no Clube Brilhante eu aprendi a ganhar, aprendi a perder, mas especialmente aprendi a reconhecer meus erros. Se eu tivesse dito que era uma gripezinha, que eu não iria tomar a vacina, que ia morrer menos gente “disso daí” do que de H1N1, ou que vacinados poderiam virar jacarés, eu teria vergonha. Se eu tivesse disseminado notícias falsas sobre medicamentos ineficazes, mentido que lockdown não funciona ou deixado de comprar 70 milhões de vacinas, eu saberia reconhecer o erro e pedir desculpas.

Já o moleque mentiroso lá do clube eu acho que não sentiria vergonha nem pediria desculpas. Faltou alguém que lhe “desse a real”, alguém que tivesse “um papo reto com ele”. Tenho certeza de que, se o meu amigo mentiroso fosse do Exército, ele não teria chegado a general. A mentira tem perna curta.

Obrigado mãe pela semana extra de suspensão. Sofri por uma semana, mas aprendi para a vida toda.

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