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No Brasil, fantasia autoritária se fortalece na frente da TV

Conteúdo televisivo é essencial para a sobrevivência de estigmas sociais

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Por Ana Flávia Pilar

“Dezessete anos e onze meses. É uma criança, não é? Para o Estatuto da Criança e do Adolescente… Para matar, ele é um inocente, uma criança. Agora, para escolher prefeito e governador esse ano, ele é responsável.” Diz, no dia 14 de maio de 2020, pouco antes de completar 20 minutos de programa, o apresentador do Alerta Nacional, Sikêra Jr. Menos de uma hora depois, continua: "Dá quase para contar as duas mãos de alegria. Oito CPFs cancelados e 14 tentativas, mas o que importa é tentar”, declarou sobre o que chamou de “goleada de vagabundos”, episódio em que vários criminosos foram mortos em Rondônia.

“Eu tenho uma pergunta para fazer para os ministros do STF. Se a polícia não pode entrar nas comunidades para fazer operação, mas os criminosos podem entrar para invadir e tomar o território... Chupa essa manga, né.” A declaração anterior foi dada por um repórter, também do programa jornalístico Alerta Nacional, em reportagem sobre a guerra entre facções rivais no Rio Comprido, bairro carioca. O vídeo foi compartilhado no perfil do Facebook da deputada bolsonarista Carla Zambelli.

A decisão do Supremo Tribunal Federal decretando a proibição de operações policiais nas comunidades durante o período de pandemia foi uma resposta a apelo apresentado pelo PSB, que salientou o salto histórico no total de mortes decorrentes de intervenções policiais em 2020. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, no primeiro mês depois da proibição, o número de crimes contra a vida e contra o patrimônio diminuiu na região metropolitana do Rio. Dados do Instituto de Segurança Pública ainda apontam que, nas comunidades fluminenses, o número de mortes caiu pouco mais de 70%, enquanto o total de casos de ferimentos decorrentes de tiroteios foi reduzido pela metade no mesmo período.

O conteúdo da televisão brasileira, especialmente quando consideramos o jornalismo policial, é essencial para a sobrevivência de diversos estigmas sociais. Programas policiais são espetaculosos por sua própria natureza. Neles, a notícia é transformada em verdadeiro filme de ação, porque a atribuição de um aspecto fantástico ao acontecimento desperta maior entusiasmo no espectador. Assim, vítima e criminoso se tornam antagonistas da dramaturgia cotidiana.

Ao criminoso, é deixado o papel de vilão, como se fosse movido por um instinto violento. É sempre apresentado como alguém incompatível com o arquétipo nacional do “cidadão de bem” e deve ser punido. Em alguns casos, destruído. "Vocês acham que dá pra ressocializar?”, foi a fala de um repórter do Alerta Nacional durante a exibição de uma reportagem no dia 3 de junho. A vítima, por sua vez, é imaculada, e devemos nos identificar com ela. O autodeclarado cidadão de bem reafirma sua própria moralidade ao assistir a programas de jornalismo policial.

Programas com essa configuração são habitualmente apresentados por homens do povo, sem frescuras e sem medo de ferir um dito “status quo”. Costumam ser caricatos, divertidos e cativantes, vistos como verdadeiros heróis que carregam o fardo de levar informação de qualidade para os brasileiros. São sofistas pós-modernos, articuladores da palavra armados com uma gama de estereótipos sociais, como a percepção brasileira sobre raça, gênero e sexualidade.

O discurso em favor da família –um modelo específico de família: patriarcal, branca e conservadora—, ataques constantes aos direitos humanos, capacitismo, LGBTfobia e misoginia são traços marcantes desse fazer jornalístico. Aliás, a própria seleção de quais envolvidos no acontecimento serão dignos de humanização, com fotos na reportagem e descrições dos amigos e familiares, caracteriza uma orientação política.

Durante o período das eleições de 2018, se tornou um consenso a ideia de que a candidatura de Jair Bolsonaro foi alavancada principalmente em função da distribuição massiva de mensagens pelo Whatsapp. Ainda assim, o papel do aplicativo durante o processo eleitoral em grande parte foi de reafirmar temáticas presentes na narrativa televisiva. No dialeto da internet, como uma espécie de gatilho.

A programação audiovisual brasileira, suas construções de imagem e discurso são primordiais para a criação de um imaginário social coletivo, de acordo com o qual “bandido bom é bandido morto”, por exemplo. A manifestação política no telejornalismo, disfarçada de opinião fora da caixinha, proferida por verdadeiros "outsiders", pavimentou o caminho até a eleição de Bolsonaro, um personagem quase mítico que, ao mesmo tempo, é “gente como a gente”. Na imagem masculina, branca e militar do então presidente ecoa nossa identidade cultural, filha bastarda da mídia de massas.

Em contexto de eleições municipais, datadas para 15 e 29 de novembro, é necessário encarar essa fisionomia do eleitorado nacional. Candidatos diferentes de “tudo que está por aí”, polêmicos e “de opiniões fortes”, contra todo tipo de mimimi e nacionalistas. Profetas da política da morte, célebres defensores dos CPFs cancelados. São essas imagens que flertam com nossas fantasias autoritárias, elaboradas cotidianamente quando reunimos nossa família frente a TV. Nessas eleições, precisamos fugir das armadilhas do discurso fácil, reconsiderar nossos mitos nacionais e construir uma trajetória verdadeiramente heroica para o país.


Ana Flávia Pilar, moradora de Irajá, na zona norte do Rio, é estudante de jornalismo e integra o Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia Política da Informação e da Comunicação da UFRJ

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