Rafael Muñoz

Economista líder para o Brasil do Banco Mundial, já trabalhou para a instituição na Ásia e na África.

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Se a Índia conseguiu, por que não o Brasil?

O que podemos aprender com as reformas tributárias em outros países federativos

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O sistema tributário do Brasil difere das atuais experiências internacionais em dois aspectos. Primeiro, o Brasil tributa mais o consumo do que a renda. Segundo, a tributação sobre o consumo é extremamente ineficiente.

O resultado é que a receita tributária auferida gera um custo elevado para a economia, devido a distorções econômicas generalizadas e altos custos de compliance. A experiência internacional mostra que é possível mudar, e países tão complexos quanto a Índia foram capazes de tratar a reforma tributária de forma eficiente. O que o Brasil pode aprender com essas experiências?

Vamos olhar primeiro as principais características do sistema brasileiro. A receita dos impostos de consumo no país representa 11,8% do PIB, em comparação à média de 6,4% do PIB em países com dados disponíveis.

Moradores da Índia sob chuva
Há dois anos, a Índia substituiu seu sistema de IVA estadual por um imposto nacional - Narinder Nanu/AFP

Além disso, a base tributária de consumo é fragmentada em vários impostos (por exemplo, os estados cobram ICMS sobre bens e alguns serviços, e os municípios cobram ISS sobre a maioria dos demais serviços). Os impostos também se sobrepõem na mesma base (produtos manufaturados estão sujeitos a IPI, PIS/COFINS e ICMS), gerando efeitos em cascata. As alíquotas variam entre locais e categorias de bens e serviços, gerando um aumento dos custos envolvidos no cumprimento das regras (compliance), além de distorções causadas pela possibilidade de arbitragem tributária e conflitos judiciais.

Apesar de ser um imposto sobre o consumo, o ICMS incide (em grande parte) na origem, gerando uma situação onde os estados lançam mão de isenções fiscais para concorrer entre si e atrair empresas. Uma empresa típica no Brasil gasta 2.000 horas por ano para cumprir com todas as suas obrigações tributárias, das quais 60% são dedicadas a impostos sobre o consumo. Por esse motivo, o Brasil ocupa a 184ª posição entre 190 países no indicador Pagamento de Impostos medido pelo estudo Doing Business do Banco Mundial

O alinhamento com as boas práticas internacionais exige a introdução de um IVA moderno, que é o imposto mais utilizado sobre o consumo de bens e serviços. Melhor dizendo, exigiria a reintrodução do IVA, visto que o Brasil foi um dos primeiros países a adotar o imposto de valor agregado, ainda na década de 1960. Com o passar do tempo, no entanto, o país ficou para trás em termos da incidência dos impostos, que agora exige uma reforma fundamental. 

A missão de reformar um sistema tributário tão complexo, com estrutura federativa e várias esferas de governo, pode parecer assustadora. A experiência da Índia, no entanto, mostra que a reforma é possível.

Há dois anos, a Índia substituiu seu sistema de IVA estadual por um imposto nacional, chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (GST, Goods and Services Tax). Esse novo IVA é coerente e mais eficiente, ao passo que preserva a capacidade dos estados de aumentar suas receitas. A experiência da Índia –um país federativo composto por 31 estados e territórios da União, com 1,2 bilhão de habitantes– pode trazer algumas lições úteis para o Brasil. 

A implementação da reforma pela Índia em 2017 levou mais de uma década. Um fator fundamental foi a liderança do governo central, que instituiu a visão de “Uma Nação, um Imposto, um Mercado”. Para superar a resistência dos estados (que temiam perder recursos), o Governo Central garantiu o crescimento de suas receitas nos primeiros cinco anos após a reforma. Outros itens fundamentais foram a definição unificada da base tributária (consumo no estado de destino), alíquotas comuns em todos os estados e a harmonização das regras tributárias. O sistema, portanto, não permite que os estados ofereçam isenções fiscais especiais. 

O novo imposto também exigiu uma nova forma de cooperação intergovernamental na Índia. Após a adoção do imposto por emenda constitucional, sua governança e implementação ficaram nas mãos do recém-criado “Conselho GST”, composto pelos ministros da Fazenda da União e de cada estado. Em nível estadual, qualquer alteração ao GST precisa seguir as recomendações desse Conselho. O Governo Central e a maioria extraordinária dos estados no Conselho precisam estar de acordo para adotar qualquer decisão que altere as alíquotas, regras e regulamentos. 

Porém, não existe sistema tributário perfeito; o GST indiano já passou por vários ajustes desde 2017. Mas os formuladores de políticas na Índia sabem que o aprimoramento do sistema tributário é um processo contínuo. O espírito de cooperação tem prevalecido –todas as decisões do Conselho GST até o momento foram por consenso. 

As experiências globais com reformas do IVA –incluindo os casos da Índia, Canadá e Austrália– foram tema de um seminário recente do Banco Mundial, organizado em conjunto com a Receita Federal do Brasil.

Os especialistas desses países mostraram que é possível países federativos terem um IVA eficiente e, ao mesmo tempo, preservarem a autonomia fiscal dos entes federados. Cada federação tem sua própria história e características únicas; não existe um único projeto de IVA federativo que sirva para todos os casos. Porém, é importante que a reforma se atenha a alguns princípios norteadores.

No Canadá, por exemplo, onde o IVA é cobrado pelos governos Federal e das províncias, a integração da administração tributária reduz ao mínimo o ônus para os contribuintes. Para declarar o seu IVA as empresas preenchem um único formulário com duas colunas: uma referente ao IVA central e outra ao IVA provincial (ver imagem). Por isso, o custo de compliance no pagamento de impostos é baixo e o Canadá figura na 19º posição no indicador Pagamento de Impostos do estudo Doing Business do Banco Mundial.​

Formulário do IVA canadense
Formulário do IVA canadense - Reprodução

No Brasil, os objetivos da reforma tributária são claros: um sistema tributário mais simples, com menos impostos de consumo e custos de compliance mais baixos, eliminando, assim, os efeitos cumulativos e outras distorções econômicas. Dada a realidade fiscal do país, o nível geral de receita não poderá ser reduzido no futuro próximo; os governos subnacionais precisam de garantias de que não perderão recursos e de clareza sobre os benefícios do fim da guerra fiscal entre estados. O desafio da reforma vai além do modelo do novo IVA. A racionalização dos impostos no Brasil será disruptiva para os atores que já aprenderam a "navegar" o sistema atual. A reforma, portanto, requer acordo não apenas em relação à sua concepção final, mas também aos mecanismos de transição e compensação necessários para gerar consenso em nível nacional. 

A discussão sobre a reforma tributária não é novidade no Brasil, mas após vários anos de estagnação e recessão econômica, o tema é mais urgente que nunca. Se a Índia conseguiu, por que não o Brasil?

Esta coluna foi escrita em colaboração com Cornelius Fleischhaker, economista do Banco Mundial.
 

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