Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu Folhajus Entrevista da 2ª

É inadmissível não ter registrado meu estupro, diz Luciana Temer 20 anos depois

Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, revela ter sido vítima de estupro aos 27 anos

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São Paulo

Em tom confessional, a apresentadora Angélica conversou sobre violência sexual com Luciana Temer, 52, presidente do Instituto Liberta.

A entrevista para o canal Mina Bem-Estar, no YouTube, foi de enorme repercussão pelo fato de as duas terem se revelado vítimas de atos de violência, até então silenciados.

No caso de Angélica, aos 15 anos, quando conta ter sido apalpada por três meninos no meio da rua em Paris, enquanto aguardava um táxi e posava para fotos. "Fiquei petrificada."

mulher de calça marrom e blusa preta posa em rooftop no centro de São Paulo
Luciana Temer é presidente do Instituto Liberta e professora da PUC-SP - Keiny Andrade/Folhapress

Luciana revelou ter sido estuprada aos 27 anos, durante um assalto. Aos 13, também vivenciara uma situação de violência sexual nem sempre encarada como tal, ao se deparar com um homem se masturbando ao vê-la passar.

"A nossa sociedade é permissiva com a violência sexual, na medida em que silencia", afirma Luciana, ao convidar outras vítimas a romper o silêncio para participar de um levante virtual, que acontecerá no 18 de Maio, Dia Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Criança e Adolescente no Brasil.

"Nosso objetivo é ter 1 milhão de pessoas participando desta passeata online." Para aderir ao movimento, é preciso entrar no site www.agoravocesabe.com.br.

Homens e mulheres maiores de 18 anos que foram vítimas de algum tipo de violência sexual na infância e/ou na adolescência são convidados a gravar três frases: "Violência sexual contra criança e adolescente é uma realidade"; "Eu fui vítima"; "E agora você sabe".

A seguir, os principais trechos da entrevista à Folha sobre o sentido do levante e de falar publicamente sobre violência sexual.

Como foi compartilhar sua experiência pessoal de um estupro com a apresentadora Angélica, que também se colocou como vítima de violência sexual?

Angélica é uma pessoa de grande projeção e que falou. Ainda é preciso coragem para falar. A gente tem que mudar essa realidade.

O mais interessante é que na nossa conversa Angélica se deu conta de que foi vítima. Muitas mulheres e homens que vivem essas "pequenas" violências sexuais sentem desconforto, sentem que aquilo foi uma agressão, mas não sabem que está previsto como crime no Código Penal.

A nossa sociedade é permissiva com a violência sexual, na medida em que silencia. Quando eu digo que com 13 anos estava andando na rua e um homem ficou olhando para mim e se masturbando, as pessoas dizem: 'Mas isso é violência?'. É.

Nem toda violência sexual gera um trauma. Se não tenho um trauma terrível eu não sou vítima? Não.

Você pode se identificar como vítima de violência sexual mesmo que não tenha sentido aquilo como trauma, o que não quer dizer que se pode permitir que aconteça. Mesmo que alguém tenha passado por situação semelhante e não deu bola, isso não significa que o fato não fosse crime.

Estou aqui falando sobre isso para ninguém mais passar pela mesma situação. Precisamos ter tolerância zero para todo e qualquer tipo de violência sexual. E precisamos denunciar com a nossa voz e a nossa força a violência que sofremos.

Como você superou o trauma?

Todo estupro é uma violência gigante. É um medo visceral de toda mulher. É uma questão que aconteceu há muitos anos e que está totalmente trabalhada e superada, até onde se pode superar uma questão dessa.

Sabia que chamaria a atenção de muita gente. Quando alguém admite que sofreu e não registrou, há uma identificação. As pessoas se reconhecem naquela situação.

Como foi para você reviver o episódio publicamente?

Eu não gostaria de falar detalhes daquele episódio porque não se trata disso. O que posso falar é que quando olho para trás me dá uma grande indignação por eu não ter registrado a ocorrência. Essa é a minha questão hoje. Nossa, como pude não registrar? Hoje me parece tão inadmissível isso.

Tenho uma consciência que na época, há 20 e tantos anos, eu não tinha. Do quão é importante não silenciar diante de nenhuma violência e denunciar todas as violências sexuais. Sejam aquelas tidas como mais graves como um estupro, seja essa violência sexual que vivi aos 13 anos.

Tenho como missão mostrar para todo e qualquer adulto que não podemos nos calar diante da violência nem nos constranger. Até para proteger as futuras gerações.

Como lidou com a enorme repercussão de sua fala?

Brinco que se abriu um portal. Obviamente, estávamos entendendo como o levante virtual proposto pelo Liberta deveria ser comunicado. Há uma estratégia de divulgação e há o acaso. Essa entrevista com Angélica fez, de certo modo, parte desse acaso.

E tenho de reverenciar a figura da Angélica, parceira incrível nessa causa. Espero que ela siga com essa bandeira, como tem feito muito corajosamente. É uma onda e convidamos todo mundo a surfar com a gente.

Precisamos falar de estupro e violência sexual?

Precisamos falar sobre violência sexual especificamente contra crianças e adolescentes.

Li uma reportagem no UOL sobre o caso Samuel Klein [acusado de abuso e exploração sexual contra dezenas de mulheres] contando histórias das vítimas e no final tinha a seguinte chamada: o que fazer em caso de violência contra mulher.

A nossa sociedade está tão voltada para a questão da mulher, que logicamente deve ser combatida, mas não consegue olhar para essa violência contra meninas e meninos.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 60,6% de todas as violências sexuais registradas no Brasil em 2020 foram contra menores de 13 anos. Por que então quando se fala em violência sexual pensamos em mulheres adultas e não em crianças e adolescentes?

Como mudar essa percepção da sociedade?

A proposta do Instituto Liberta com esse levante virtual é fazer um grande barulho para que o Brasil de fato enxergue essa violência.

Temos de chegar a todos os candidatos e candidatas a presidente e a governador: 'Agora você sabe. Qual é o seu plano concreto para o enfrentamento dessa violência?'.

Políticas públicas são construídas a partir de desconforto e pressão social. Essa passeata tem a pretensão de gerar enorme desconforto social e provocar a construção de políticas públicas efetivas de enfrentamento.

É uma forma de mostrar que aqueles números têm rostos, de diversas classes sociais, porque essa violência não tem classe social, não tem raça, não tem cor, atinge a sociedade como um todo. É preciso materializá-la.

Qual é o objetivo de um levante dessa magnitude?

Violência sexual contra criança e adolescente é um problema gigante no país e totalmente invisibilizado. Enquanto não enxergarmos essa realidade, ela não muda.

A violência contra a mulher começa a ser enfrentada quando a sociedade a enxerga por meio de um grande barulho feito pela sociedade civil, pelas feministas. O mesmo acontece com o racismo.

Enxergar significa construir políticas públicas de enfrentamento. Uma vez que a sociedade vê, ela não "desvê" mais.

Que cuidados são tomados para proteger as vítimas nessa passeata virtual?

Ninguém precisa contar como aconteceu. Não se trata de falar da violência que cada um sofreu. É colocar o rosto e dizer que está junto por esse enfrentamento.

Precisamos neste momento que essa violência seja concretizada por meio de uma passeata virtual, na qual as pessoas rompam com o silêncio e o constrangimento.

Mas, sim, é um ato de coragem, na medida em que empresto a minha voz, admitindo que eu vou ser parte da última geração que se cala.

Por isso você se colocou publicamente e será parte da passeata como uma das vítimas?

Como vou pedir para as pessoas se eu não der a minha voz? Ah, mas você se calou por muito tempo, podem pensar. Mas as pessoas próximas sabiam. Não se trata de um segredo.

Eu empresto a minha voz e eu estou pedindo a voz das pessoas. Por quê? Sem este levante não conseguiremos mudar a régua dessa realidade de violência.

Muita gente me procurou dizendo: eu queria participar, mas não tenho coragem de contar a minha história. Estamos trabalhando isso na comunicação: é uma exposição que protege.

A vítima estará no meio de uma multidão. Não é sobre a sua história nem sobre você individualmente, é sobre uma força que nasce. Isso é muito bonito.

O mais interessante é escutar o reconhecimento da importância desse levante, no sentido de que tem uma panela de pressão a ser destampada.

Como disse Vera Iaconelli [psicanalista e colunista da Folha], em um seminário sobre exploração sexual de criança e adolescente, somos seres de linguagem e falar liberta. É parte da cura.

Raio-x

Luciana Temer, 52, é advogada e professora de Direito Constitucional na PUC-SP. Filha do ex-presidente Michel Temer (MDB), ela foi secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, de 2013 a 2016, na gestão Fernando Haddad (PT). Atualmente, preside o Instituto Liberta

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