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Luciana Temer

Brasil precisa enxergar a gravidade da violência sexual infantil

Devemos romper esse ciclo que envolve dados e denúncias insuficientes

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Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

Venho sistematicamente insistindo, neste espaço da Folha, sobre a necessidade urgente de darmos visibilidade para a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.

Minha tese é a seguinte: não há políticas públicas eficientes para o enfrentamento do problema porque gestores públicos se preocupam com graves problemas sociais —e isso ainda não é considerado um grave problema pela sociedade brasileira.

Já a sociedade não vê a gravidade do problema porque não enxerga a sua dimensão. Não enxerga porque não há dados suficientes, e não há dados porque não há denúncia —e não há denúncia porque esse é um crime que é silenciado e que envergonha a vítima e seus familiares. Enquanto não rompermos esse ciclo, a violência sexual irá se perpetuar, com todas suas consequências perversas, pessoais e sociais. Precisamos romper o silêncio sobre a violência sexual infantil!

Mas hoje, para demonstrar a parte da tese sobre invisibilidade, vou me valer do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, recém-lançado. A publicação, produzida desde 2007 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização não governamental, apartidária e sem fins lucrativos, é o mais relevante levantamento de dados sobre segurança pública do país —e, não tenho dúvidas, ajuda com seu competente diagnóstico a nortear as políticas de segurança.

Até a edição de 2019, os dados do crime de estupro eram apresentados de forma unificada, incluindo o estupro de vulnerável (qualquer tipo de relação sexual de um adulto com alguém de até 14 anos é considerado estupro), o que nos impedia de ver a dimensão da violência sexual contra crianças e adolescentes. Quando a informação foi desmembrada, pudemos enxergar que, em 53,8% dos casos, as vítimas tinham menos de 13 anos, o que equivalia a quatro meninas estupradas por hora no Brasil.

No anuário de 2020, essa estatística sobe para 57,9%. Ao avançar na abordagem do tema, o estudo traz um comparativo entre os registros criminais do primeiro semestre de 2020 e o de 2019, revelando que houve uma queda de 22% nos registros de estupro de vulnerável em razão da pandemia (cabe aqui lembrar que mais de 70% dos estupros ocorrem dentro das residências).

Manifestantes protestam em Brasília contra posição do governo Jair Bolsonaro em caso de menina de 10 anos que engravidou após estupro - Pedro Ladeira - 20.ago.20/Folhapress

No anuário de 2021, a temática do estupro de vulnerável cresceu significativamente, e o crime foi analisado sob diversos ângulos (idade, sexo, cor da vítima, local do crime etc.), além da presença de artigos como o de Samira Bueno e Marina Bohnenberger, explicando que crimes sexuais são “cerceados por ambientes de coerção e intimidação, seja da relação da vítima com o agressor ou do momento da comunicação do fato às autoridades policiais, quando a vergonha e o medo podem ser obstáculos”.

Foram registrados 60.460 casos de estupro em 2020. Em 85,2% deles, o autor era conhecido da vítima, o que talvez ajude a entender a imensa subnotificação desses crimes (segundo o anuário de 2015, calcula-se que apenas 35% dos crimes sexuais são notificados). Do total de estupros registrados, 73,7% foram contra vulneráveis, dentre os quais 60,6% menores de 13 anos.

O crime de estupro de vulnerável foi inserido no Código Penal em 2009. Ora, se está tipificado desde 2009, porque ele só aparece explícita e isoladamente no anuário de 2019? Dez anos depois?

Tenho um palpite. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública trabalha com dados relevantes e significativos. Temos dados relevantes sobre os crimes visíveis, que afligem a sociedade. O Instituto Liberta foi criado em 2017 para ajudar a provocar e fazer o Brasil falar sobre violência sexual infantil. Para gerar consciência e, a partir dela, denúncia e dados para diagnóstico. A partir do diagnóstico, construção de políticas públicas eficientes para enfrentar essa violência epidêmica.

Parece que, finalmente, estamos começando a falar sobre estupro de vulnerável. Mas essa é uma das violências sexuais perpetradas contra crianças e adolescentes. A exploração sexual foi inserida no Código Penal em 2014, e o crime de divulgação de cena de estupro ou de pornografia envolvendo vulnerável em 2018.

Quando será que conseguiremos colocar também esses crimes na pauta da sociedade e, consequentemente, no anuário? Insisto, o Brasil precisa falar sobre violência sexual infantil.

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