Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Descrição de chapéu internet

Com humor, músico rebate ataques de 'haters' por aparência e namoro com atriz

O uruguaio Pablo Vares responde à toxicidade das redes sociais para conscientizar quem o critica por usar dreads, trabalhar na rua e ser mais jovem que a companheira

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O músico Pablo Vares se apresenta na rua no Rio de Janeiro, sua principal fonte de renda quando decidiu morar no Brasil e investir na carreira artística Lucas Duarte/Divulgação

São Paulo

"O marido dela parece o homem das cavernas. Tem gosto para tudo."

A mensagem de uma "fã" postada no perfil do Instagram de Letícia Spiller é uma das milhares endereçadas ao músico Pablo Vares, 33, companheiro da atriz há sete anos.

A resposta do uruguaio, que se mudou para o Brasil há 11 anos, a este tipo de comentário sobre seu visual de dreadlocks e barbicha tem sido o humor.

Em vídeos que esbanjam ironia e inteligência, Vares rebate preconceito de classe (é chamado de mendigo e sujo, por ser também um artista de rua), etarismo e machismo (pelo fato de ser 16 anos mais jovem do que sua mulher) e a falta de respeito nas relações virtuais.

Juntos há sete anos, o músico Pablo Vares e a atriz Letícia Spiller sofrem ataques de 'haters' nas redes sociasi por conta da diferença de idade e do visual alternativo dele - Acervo pessoal

"Me chamou de quê?", brinca ele, com um tacape na mão, ironizando que somos todos uma evolução do homo sapiens.

"Comecei a receber muitos ataques de haters por causa do meu relacionamento, da minha aparência e do meu estilo de vida."

Há um ano, o violonista deixou de ignorar os xingamentos e provocações nas redes sociais. Passou a produzir conteúdos periódicos e bem-humorados para dialogar com os 106 mil seguidores no Instagram e gerar reflexões.

"É curioso ser chamado de sujo, desnutrido, desleixado ou pior. Até há pouco tempo me chamavam de playboy, mauricinho."

Letícia se diz orgulhosa do modo como o companheiro lida com a toxicidade nos meios digitais.

"Eu admiro muito o Pablo, um grande artista e um homem extremamente inteligente. É um orgulho ver que ele está levando as pessoas a refletirem através do humor."

A seguir o relato de Vares sobre o fato de um gringo, artista de rua e com dentes tortos incomodar tanto. Ele fala ainda sobre a decisão de construir a vida e a carreira no Brasil, ao lado da mulher que ama.

"Tudo começou vinculado ao meu relacionamento. Até então eu não era uma figura pública.

Os 'haters' vieram com a visibilidade. Aparecemos na revista 'Caras' e passaram a comentar nos posts dela comigo. Durante uns seis anos, ignorei os comentários de ódio, preconceito e falta de empatia mesmo.

É aquela coisa de falar mal do outro ou dar opinião de forma desrespeitosa. Não é legal ler tanta grosseria. Nunca me falaram essas coisas na minha cara. Na internet, sentem-se livres para dizer o que não fariam olho no olho.

Muitas vezes, eu vou lá ver os perfis dos 'haters'. Tenho uma pasta separada no meu telefone só para eles. Vejo frases de motivação, falando de Deus, de amor, de família. E o que eles fazem? Detonam a família, falam contra o amor.

Há um ano, comecei a responder os posts mais agressivos. ‘Pelo amor de Deus, Letícia, gurizão de dread, não! Imagina os filhos, que vergonha!', escreveu um deles. Fui curto na resposta: 'Vergonha teria eu de fazer comentários desse tipo'.

Minha intenção não é apontar um dedo para quem fez o comentário, mas gostaria que a pessoa tivesse consciência.

O principal intuito dos vídeos é mostrar que não são casos isolados, são milhares de pessoas fazendo isso.

Cada um escolhe o que quer odiar. Tem uns que comentam minha barba, outros, os dreads. São preconceituosos quanto à arte de rua, à diferença de 16 anos entre eu e Letícia. Mas o amor não tem data de validade.

Completamos sete anos juntos. Conheci a Letícia no meu segundo ano no Rio e moramos juntos desde 2017. Estava tocando em frente à Livraria da Travessa, em Ipanema, quando um dançarino me viu e falou de uma peça de teatro. Seis meses depois aconteceram as audições e passei.

Letícia estava no elenco dessa peça, Dorotéia, em que Rosamaria Murtinho fez a protagonista e comemorou 60 anos de carreira.

Foi meu primeiro trabalho com contrato no Brasil. Só que o patrocínio não saía. Demoraram três meses para pagar e eu não tinha tempo de tocar na rua. Comecei a passar dificuldade e fui pintar um apartamento para ter onde ficar.

Meus maiores perrengues foram durante trabalhos formais. Na rua nunca me faltou nada. Tenho forte admiração pelos artistas de rua.

Em outubro de 2014, conheci um argentino que morava no Rio e se sustentava trabalhando na rua, mas não tinha ninguém para acompanha-lo musicalmente.

Ele me garantiu que eu ia conseguir alugar um quarto e pagar minha alimentação. Botei fé.

Durante um ano, a gente se apresentou todos os dias, das 10h às 18h, inclusive debaixo de chuva, desde a Tijuca até a Gávea, passando por Ipanema, Leblon, centro.

Nunca me faltou dinheiro e cheguei a juntar grana para fazer viagens para outros estados para estudar com violonistas espanhóis de passagem pelo Brasil.

Tem muito preconceito contra os artistas de rua, a começa pelos próprios artistas. Falam que tocar na rua é maravilhoso lá fora, em Paris.

Durante mais de dois anos, minha principal fonte de renda era tocar na rua. Em paralelo, trabalhava para companhias de dança flamenca.

Hoje em dia, toco com menos regularidade nas ruas. Eu me apresento em teatros, já fui solista convidado em orquestra sinfônica. Gravei músicas que apareceram no BBB do ano passado.

Estou preparando meu primeiro álbum com financiamento coletivo. Sou autodidata. Só aos 18 anos fui descobrir o violão acústico, o flamenco, que acabou virando o centro da minha vida.

Nasci em Montevidéu, mas a família da minha mãe é do Rio Grande do Sul, onde morei com minha avó e tios, quando decidi vir para o Brasil.

Se um branco, gringo, heterossexual recebe esse tipo de ataque, então imagina o que é ser preto, indígena ou ter orientação sexual ou identidade de gênero diferente

Pablo Vares

músico

Larguei a faculdade de Comunicação Social no Uruguai para me dedicar aos meus sonhos.

Tenho vínculo forte com artes marciais. Trabalhei como instrutor de muay thai em Campinas. Foi a primeira oportunidade no Brasil, mas eu não sabia se queria bater e apanhar a vida toda.

No Uruguai, tinha dado aula de física, vendia camisetas e artigos esportivos, montava som em festas, pintava paredes. Tive umas cinco profissões entre 18 e 22 anos.

Fiz até bicos como modelo. Talvez isso tenha trazido fortaleza psicológica para enfrentar os comentários sobre a minha aparência atual.

Durante 26 anos, falavam que eu era lindo, queriam chegar perto de mim. Do nada, virei mendigo, vagabundo, fedorento. Sinto essa diferença.

Se um branco, gringo, heterossexual recebe esse tipo de ataque, então imagina o que é ser preto, indígena ou ter orientação sexual ou identidade de gênero diferente. O Brasil é o país que mais mata trans.

Tento chamar atenção para esses problemas que a sociedade brasileira e o mundo precisam enfrentar. O humor é um bom veículo para provocar reflexão.

Temos que preservar nossa saúde mental. Minha terapia é lavar a louça. Quando vejo um comentário que me abala, lavo uma pia cheia de prato e panela. E as respostas aparecem.

Acho que estou blindado pela minha própria profissão e estilo de vida. Tenho autoestima em dia. Os ataques são absurdos e gratuitos.

É uma briga que não comprei. Eu só queria tocar meu violão, mas entendi que é preciso falar sobre esse preconceitos e abraçar nossas imperfeições para trabalhamos juntos por um mundo melhor".

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