Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Eliane Trindade
Descrição de chapéu mudança climática

Sobreviventes de tragédia no litoral norte relatam perdas e desejos em documentário

Parceria da TV Folha com a produtora FICs, 'E o Morro desceu no Carnaval' foi gravado na semana em que um mar de lama devastou São Sebastião (SP)

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A empregada doméstica Gisele Jesus, que teve a casa alagada pelas chuvas em São Sebastião

A empregada doméstica Gisele Jesus, que teve a casa alagada pelas chuvas em São Sebastião Marlene Bergamo/Folhapress

São Paulo

"A gente chora pra dormir, chora pra acordar. Não tira a imagem da cabeça. É assustador. Só quem vê a morte de perto é capaz de entender."

É assim que Cláudia Rodrigues, 45, resume como foi o despertar durante a catástrofe causada pelas chuvas no litoral norte de São Paulo na noite de sábado para domingo do Carnaval 2023.

A empregada doméstica é uma das personagens no epicentro da tragédia retratadas no documentário "E o Morro Desceu no Carnaval", produzido pela TV Folha, em parceria com a Fábrica de Ideias Cinemáticas (FICs).

A moradora da rua 1 da Vila Sahy, comunidade varrida pelo temporal e por um mar de lama, sobreviveu para contar o que as águas levaram, tanto material quanto emocionalmente.

Ao longo de 21 minutos, ela a e outros sobreviventes, assim como heróis anônimos que trabalharam incansavelmente no resgate de soterrados, vivos e mortos, e figuras-chave no atendimento às vítimas relatam o que significou se deparar com um "cenário de guerra".

O recorde de 600 milímetros de chuvas naquela madrugada deixou 65 mortos, 19 deles crianças, e mais de 1.200 desabrigados ou desalojados na região de São Sebastião (SP) e sua sucessão de praias paradisíacas.

"Acabou tudo", desesperou-se Cláudia, ao abrir a porta e ver cenas que mostravam a força destrutiva do "morro descendo", registradas pelas câmeras de segurança de sua casa.

"Eu comecei a ouvir um primeiro trovão, que na verdade não era um trovão, mas o morro rachando, o morro descendo", descreve o cabeleireiro Gabriel de Souza Santos, 27, que morava de aluguel na rua Zero.

Por volta das 4h da manhã, ele se deu conta da dimensão do estrago, quando ajudava os vizinhos a escapar com água na altura da cintura, diante de corpos arrastados pela lama ou soterrados por escombros.

Ao amanhecer, ele já era um dos voluntários no abrigo improvisado na Escola Municipal Henrique Tavares de Jesus, onde foram acolhidos cerca de 400 desabrigados.

Gabriel se alistou no "exército local", formado por moradores e veranistas, para socorrer as vítimas até a chegada do poder público, em meio a um feriado prolongado e ao isolamento imposto pela queda de barrancos que fecharam vias de acesso.

William de Jesus Silva, 37, o Bonner, e Diego Viera, 31, filhos de fundadores da Vila Baiana, assumiram o papel de socorristas, em meio ao caos.

"Ouvi o grito de uma menina falando. Estou sem ar", relata William. "Não me deixa aqui, tio", emociona-se Diego, ao recordar de um dos momentos mais dramáticos daquela noite sem fim.

Frases que traduzem o desespero do regaste improvisado de uma garotinha de 11 anos, sem equipamentos apropriados.

A dupla usou as mãos, marretas e pás que tinha à disposição para resgatar parentes e amigos engolidos pela lama.

"A população se abraçou", descreve William. "Se não fosse nós aqui um terço não teria sido resgatado."

O documentário está dividido em quatro partes: a noite, o dia seguinte, o passado e o futuro.

O terceiro bloco é dedicado às origens de uma tragédia anunciada, mostrando como se deu a ocupação da encosta, em uma área de risco, pelos baianos que foram chegando na região para trabalhar nas casas e condomínios de luxo da região.

"A Vila Sahy na verdade foi uma criação. Para deixar mais bonitinho esse negócio de Vila Baiana, que é muito cara de favela, como diz o povo", explica Gisele de Jesus, 31, que deixou o interior da Bahia para trabalhar como doméstica em casas de veraneio.

Pioneira entre os migrantes, Evanildes Andrade, 56, saiu de Coaraci (BA) há 39 anos. Atual presidente da Amovila (Associação de Moradores da Vila Sahy), ela recorda o histórico de luta para se fixar em um local considerado de risco desde sempre.

"O veranista queria ver a gente fora daqui. Falava que tinha esgoto a céu aberto, que estava prejudicando a praia", relata Ildes, como é mais conhecida, sobre a ocupação irregular da área para além da pista que divide a comunidade de trabalhadores das casas à beira-mar.

"A gente escutava que iam soltar uma bomba aqui, que a gente estava acabando com a paisagem."

A última parte do documentário aborda o futuro. No calor dos acontecimentos, os entrevistados falam sobre o que é preciso para sair da lama, literal e metaforicamente.

"Esse evento climático precisa ser estudado, porque perdemos a nossa referência ambiental, geológica. Como criar moradias populares em locais onde há uma gravidade climática?", indaga a advogada Fernanda Carbonelli.

Ela foi uma espécie de "prefeita do caos", ao comandar os esforços da sociedade civil no socorro imediato a vítimas e sobreviventes, em um gabinete de crise na ONG Verdescola, que serviu de abrigo, hospital de campanha e necrotério.

Para além da emergência, a tragédia também levanta questões da desigualdade social que ficou ainda mais evidente diante da catástrofe.

"Que as pessoas de maior poder aquisitivo deixem viver aqui aquelas que vão lá na casa dos que têm dinheiro e limpam, arrumam a cama, fazem a comida", diz Valdineia da Conceição, 50, a Val, dona do restaurante Pimenta Rosa.

Cozinheira maranhense que conseguiu abrir o próprio negócio há um ano, com a ajuda dos antigos patrões, Val se tornou símbolo de solidariedade em meio à tragédia.

Fez marmitas com todos os mantimentos que tinha em estoque para o Carnaval, momento de virada no negócio, mas que acabou trazendo mais prejuízos.

Ela deixou de lado a limpeza da casa inundada para alimentar quem tinha fome. "É muita desigualdade. Temos que diminuir essa distância, criar pontes", diz Val.

Esse microcosmo de um Brasil desigual é retratado em "E o Morro Desceu no Carnaval". Foram dois dias de filmagens por ruas enlameadas, casas alagadas, abrigos e entre os escombros de uma tragédia anunciada. "Eu ainda não consegui chorar", diz Ildes, sobre o luto.

Além do documentário em parceira coma Folha, o cineasta Newton Cannito montou um projeto que visa resgatar o sonho das pessoas atingidas pela tragédia.

O "Voltar a Sonhar" oferecerá cursos e vivências gratuitos para a população local. A primeira turma acontecerá em maio, na Residência Criativa da Utopia Brasil em São Sebastião.

Todo o processo será acompanhado e registrado em um segundo documentário "São Sebastião em 2030", que vai continuar ouvindo vítimas, moradores, veranistas, ambientalistas e autoridades, ao longo dos próximos meses, para aprofundar o debates sobre reconstrução, imaginando futuros a partir dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, os 17 ODS da Agenda 2030, da ONU.


E o Morro Desceu no Carnaval

Reportagem Eliane Trindade
Roteiro e edição Giovanna Stael
Direção Newton Cannito
Fotografia Marlene Bergamo e Rodolfo Figueiredo
Produção Eliane Trindade e Marlene Bergamo
Editora da TV Folha Beatriz Peres

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.