Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade

'Jogam com a impunidade', diz Ana Moser sobre apostas esportivas

Ministra avalia que manipulação de resultados resulta do vácuo regulatório deixado pelo bolsonarismo e relata ter aceitado o cargo com a missão de revolucionar o esporte

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São Paulo

Depois de 22 anos como empreendedora social, Ana Moser assumiu o Ministério do Esporte em janeiro com o desafio de fazer uma revolução.

A pasta voltou a ser ministério, após quatro anos rebaixada a secretaria no governo Bolsonaro. "O significado é ter um status equilibrado junto às outras áreas sociais", diz ela, ressaltando o fato de manejar orçamento que ainda não chega a R$ 1 bilhão por ano.

Com a instalação da CPI das Apostas Esportivas, em meio ao escândalo de manipulação de resultados, a ex-atleta e medalhista olímpica do voleibol ressalta que a regulação do setor está em discussão pelo Executivo há meses e que uma Medida Provisória será enviada nos próximos dias ao Congresso.

A ministra do Esporte, Ana Moser, conta que aceitou convite do presidente Lula para assumir a pasta com a missão de revolucionar o esporte - Eduardo Knapp/Folhapress

"É um setor totalmente desregulado. Aproveitaram o vácuo bolsonarista e foram pra cima. Virou terra de ninguém", afirma. "Jogam com a impunidade."

A ministra fala também sobre o desafio de estruturar o futebol feminino e de mais um ato de racismo contra Vini Jr. na Espanha: "É uma violência contra o indivíduo, um povo e o esporte".

Ficou surpresa com o convite para ser ministra? O normal seria não acontecer, né? No grupo de transição tinha Raí, políticos, partidos. Eu ali era somente a sociedade civil organizada, com o instituto e o Atletas pelo Brasil por trás. Um grupo do esporte fez um encontro com o presidente Lula antes do segundo turno naquele desespero de mostrar que o esporte tem progressistas.

Como é ser a primeira mulher a ocupar o cargo e a segunda atleta, depois de Pelé, ministro de 1995 a 2001 no governo FHC? Agora foi dada prioridade para um outro tipo de esporte. Não fui chamada para fazer mais do que já se faz. O presidente me chamou sabendo que eu tinha proposta, com o desafio de manter o que tem e construir os 90% que faltam.

O que significa voltar a ser ministério? Um significado simbólico e em termos de orçamento e estrutura. É ter um status equilibrado junto às outras áreas sociais. Ter a condição de trabalhar o orçamento, no momento em que a Lei Geral dos Esportes é aprovada no Congresso e o Plano Nacional tramita no Senado.

Como fazer com que a lei do esporte seja efetiva? Tem as competências da União, dos Estados e dos Municípios e uma estrutura de conselho, plano e fundo. O fundo é muito importante e precisa crescer bastante. Hoje, tem recurso das loterias. Boa parte já designada para o sistema competitivo, COB e confederações. Mas tem outros recursos da loteria que vão alimentar o fundo visando os outros 90%. Recurso, por exemplo, das Bets [apostas esportivas]. Não sei exatamente quanto virá para o esporte. Tem também a questão da criação de uma agência reguladora para cuidar da integridade.

Na semana em que foi instalada a CPI das Apostas Esportivas, a ministra afirma que o setor é terra de ninguém por conta do "vazio regulatório" deixado pelo governo Bolsonaro - Eduardo Knapp/Folhapress

É a discussão da vez por conta da CPI instalada nesta quarta-feira (17)? As Bets foram autorizadas no Brasil em 2018, mas nunca foram regulamentadas. No último ano proliferaram de maneira muito forte. Quando vi o jogo em Brasília do Palmeiras e Flamengo em janeiro, tinha umas cinco publicidades dos portais.

Desde o início do governo, está se construindo um entendimento com Fazenda, Justiça, CGU [Controladoria Geral da União]. A CPI acontece agora, mas o governo está preparando uma proposta há meses. Entre elas a de tributação, no sentido de que precisa ter sede no Brasil, além do controle da integridade.

É uma série de crimes? Sim. Aí vieram as fraudes, o que é gravíssimo para o esporte. Precisa ter fair play [jogo limpo], ética. Não pode fabricar resultados, não pode entregar jogo. Isso é credibilidade.

Seria uma questão de formação e até de desigualdade social, pelo fato de parcela dos jogadores qanhar pouco? Não é isso que está se vendo. Não é na série B, C. É na série A. É uma questão de conhecimento do risco. Jogam com a impunidade: 'Ah, ninguém vai pegar, ninguém vai saber'. Mas se pegar, acabou a carreira.

Como está se construindo essa regulação das apostas? A partir de um desenho do que acontece na Europa e nos Estados Unidos. Que tipo de aposta dá margem para manipular? Apostar, por exemplo, em cartão amarelo é muito fácil. Estou falando do futebol, mas tem os outros esportes.

Por que o Brasil se tornou o líder mundial em fraudes? Por causa desse vazio regulatório. Aproveitaram o vácuo bolsonarista e foram pra cima. Virou terra de ninguém.

Como enxerga o caso do jogador Wallace, suspenso por fazer enquete sobre atirar ou não no presidente Lula? Foi uma incitação à violência e ao ódio, um discurso inadmissível em qualquer situação, ainda mais de uma referência, um campeão olímpico. Não há como normalizar uma atitude assim. A AGU provocou o Conselho de Ética do COB a dar uma punição ao jogador. O clube, o atleta e a CBV acharam por bem liberá-lo para jogar a final. O que pareceu uma afronta. Entrou no último ponto para levanta a taça.

É uma queda de braço? A questão ideológica está colocada em todos os setores.

Como é a formação dos atletas quanto a valores? Cada um traz seus valores de casa. O esporte é bolha, um ambiente tutelado. Desde cedo, tem técnico, dirigente, agente que cuida de tudo. Tem ainda essa coisa conservadora, da meritocracia. 'Ah, porque se treinar, consegue alcançar'. Sem ter a mesma condição na largada, não vai chegar. Não tem um senso para saber qual o percentual de atletas é de direita ou de esquerda. Visivelmente, o pessoal do vôlei e do futebol tem sido barulhento, mas tem bolsonarista de tudo que é jeito.

Sua estreia como ministra foi com uma declaração polêmica sobre jogos eletrônicos ser entretenimento e não esporte. Esporte tem movimento, é atividade física, com ocupação dos espaços públicos. Mas as pessoas só entendem o que elas querem. Não adiantava ficar batendo boca. Essa questão está sendo discutida no governo como um todo, não tem como localizar só no Esporte. Estamos falando de royalties, de direitos de produtos e implicação de chats dos jogos online em violência na escola. É todo um fenômeno. Tem Cultura, Trabalho, Saúde, Ciência & Tecnologia, Fazenda.

Que balanço faz desses primeiros meses de governo? Nos primeiros cem dias, lançamos o programa de skate, 50% feminino. Estamos lançando mais dois programas: o Segundo Tempo, de atividade esportiva para crianças e jovens no contraturno escolar, e o Programa de Esporte e Lazer na Cidade, para adultos e terceira idade.

O grupo de trabalho sobre futebol feminino fecha a construção de estratégias em dois meses. Para ampliar as condições de prática, com temporada, clubes, campeonatos, estrutura e competições para categorias de base e equipe principal. Além da questão da presença mais amigável para mulheres e crianças nos estádios. Estamos acompanhando o calendário para candidatura da Copa do Mundo Feminina 2027. A escolha é no ano que vem, estamos preparando o caderno de intenções.

Quando me chamou, o presidente Lula falou que esperava que se fizesse uma revolução no esporte e ela tem que ser feita de maneira integrada com as outras áreas. Está para sair um decreto para construir essa política com os ministérios da Saúde, Educação, Esporte, Desenvolvimento Social.

Como é que a sua interface com outros ministérios? É uma construção, vem desde o instituto. Mais da metade do meu trabalho é convencer, sensibilizar, mobilizar. A Saúde e o Esporte estão renovando seus planos nacionais, então temos essa oportunidade. Junto com PNUD, Unicef e Unesco, estamos construindo parcerias e pilotos em cada região para criar uma política de referência e oferecer a todos os municípios.

O que muda com a caneta na mão? Não muda muito. Você está sempre sem recurso, sem equipe e com muita coisa para entregar. Só que é tudo maior, apesar de ser um dos menores na Esplanada. Tem a questão do recurso ainda muito relacionado com o legislativo. O trabalho é duplo, porque é de convencimento dos parlamentares. Numa ONG é mais rápido. Se tem recurso consegue contratar e executar. No serviço público precisa uma construção de política, sempre coletiva. Tem todo o processo, conversa em cima de pareceres e amarração política. Entender esse jogo político nunca foi meu forte.

Como avalia mais um ato de racismo contra Vini Jr. na Espanha? O episódio racista contra o Vini, aliás recorrente, é inadimissível. É um retrato do que há de pior do que o ser humano pode oferecer para o outro. Não tem justificava. Todos devem condenar, exigir reparação em todos os níveis. É uma violência contra o indivíduo, um povo e o esporte.

O ministério atua também em questões como transfobia e machismo? Sim. São as políticas transversais. Estamos construindo com o Ministério dos Povos Indígenas uma política do esporte indígena. Assim como com o Ministério da Integração Racial, uma política contra o racismo no esporte. Com o Ministério das Mulheres já aceleramos bastante coisa. Assim como o Paradesporto, para pessoas com deficiência e neuroatípicas.

O Corinthians foi denunciado por gritos homofóbicos no estádio na partida contra o São Paulo. Tem de parar. É questão de pactos sociais, de etiqueta, de respeito mesmo, de acordos na vida. Por que tem que ser diferente no estádio? Nunca admiti torcida vaiar. É falta de respeito.

Você chegou ao ministério falando da sua mulher e dos seus filhos. O ambiente político está aberto para a realidade de uma família homoafetiva? Esse governo assumiu determinadas inclusões e respeita todas as individualidades. Isso colocado como normal, depois de quatro anos de muita repressão e violência.

Após vencer o 'Aprendiz Celebridades', agora está em um outro tipo de reality show na política? Estou em um 'Aprendiz' de quatro anos. Mais desafiado. Ee bem melhor com o presidente Lula do que com Justus, né? [risos]. Ele vai querer me matar.

Como é a convivência com o presidente Lula? Cruzei com ele poucas vezes. Ele é incrível, gosta de esporte. Estive mais com a Janja, que participa bastante e ajuda a dar visibilidade para áreas sociais. É superimportante, pois se bobear tem só os grupinhos de homem falando.

Como foi a trajetória de empreendedora social a ministra? Há 22 anos, comecei minha participação depois da olimpíada de 2000, em Sidney, quando o Brasil não ganhou nenhum ouro. Tínhamos que fazer alguma coisa. Criei em 2001 o Instituto Esporte & Educação. Fui participando da construção desse setor com o Atletas pelo Brasil e a Rede Esportes pela Mudança Social, com as ONGs. O setor não tem muito traquejo e participação política. Quer dizer, tem, mas só os altos dirigentes. É forte a atuação de COB [Comitê Olímpico Brasileiro], confederações, federações e clubes no esporte de alto rendimento. É coisa de 5% da população, no máximo. E os 90% restantes? É a visão de que é preciso desenvolver não só os habilidosos.

Ana Moser, 54, fundou em 2001 o Instituto Esporte & Educação. Ex-atleta, atuou como atacante na Seleção Brasileira de Voleibol, foi bronze na Olimpíada de Atlanta (1996) e deixou as quadras em 1999. É casada com uma jornalista e tem dois filhos.

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