Em uma semana, leitor amigo, mudei de ideia sem ter mudado de lado num debate em particular. Decidi radicalizar.
“Está falando do quê?” Na sexta passada, neste espaço, saudei a maioria de 6 a 3 já então formada no STF em favor do inciso LV do artigo 5º da Constituição, que prevê a ampla defesa e o direito ao contraditório.
No caso em votação —concluída, no mérito, nesta quarta (2), por 7 a 4—, os ministros decidiram que o réu delatado fala depois do réu delator.
Se alguém voltar àquela coluna, lerá: “Defendo que se anule tudo porque se trata de direito fundamental, assegurado pelo artigo 5º da Carta”.
Dei uma piscadela, no entanto, para a modulação: “Mas deve prevalecer alguma acomodação. Dos males, o menor. O importante é resgatar o princípio e conter os golpistas do Estado de Direito. E isso foi feito”.
Os argumentos dos meus adversários teóricos pioraram bastante, em particular o de pessoas dotadas intelectualmente para entender o debate.
Afirmar que, dada a ausência de uma lei ou norma de caráter ou efeito concreto, o tribunal não poderia ter apelado à norma abstrata (a Constituição) para assegurar a ampla defesa e o contraditório corresponde a escolher o vale-tudo.
Notem que o tribunal não está nem mesmo fazendo uma interpretação extensiva da Carta, a exemplo do que se deu com a criminalização da homofobia.
Estamos lidando com um dos pilares das democracias: o direito de defesa, protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 11) e pelo Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º), de que somos signatários.
Estranho seria se a ausência de lei de caráter ou efeito concreto tornasse sem efeito a norma abstrata, porquanto esta pode existir, felizmente, sem aquela, mas aquela inexiste sem esta.
Mudei em quê? Não condescendo mais com modulação nenhuma! É tal o descalabro a que se chegou que só “A Palavra” nos salva.
“Conhecereis a Constituição, e ela vos libertará”. O “Mito” não encontrará isso em João. Nem em Barroso, Fux ou Fachin.
O governo Bolsonaro é só o desastre contingente que a Lava Jato nos deixa como herança. Há um outro que vai além de um ou dois mandatos: a corrosão do valor abstrato da Justiça.
E, por favor, que extrema direita e extrema esquerda não se estreitem num abraço insano para tentar provar que tal valor, na prática, nunca se traduziu em justiça efetiva.
Ainda que eu flertasse, por apreço à argumentação, com tal afirmação, teria de dizer o óbvio: com bons princípios, podem-se corrigir os males da injustiça. Sem eles, a injustiça é que se firma como princípio. E aí estaremos danados, condenados ao voluntarismo dos cretinos e à demagogia dos populistas.
Sim, avançou-se um pouco, mas só a anulação de todas as condenações em processos da natureza de que se trata aqui dá concretude à norma abstrata.
Limitá-la apenas aos réus que recorreram tempestivamente constitui uma agressão a direito fundamental.
Um indivíduo não pode alegar ignorância da lei para sair incólume de um crime. O Estado, por seu turno, não pode sonegar ao indivíduo um direito que é seu alegando que este o ignorou no devido tempo. Erro em alguma coisa?
O Supremo, como ente, cometeu erros e omissões no curso do horror jurídico instaurado pela Lava Jato sob o pretexto de combater a corrupção. Tem a chance de corrigir parte do estrago.
Tal correção não vai proteger corruptos, mas restaurar a higidez da norma. Até porque não se estará substituindo condenação por absolvição. Trata-se de resgatar dos escombros o devido processo legal.
Para encerrar: o livro do não homicida —por intervenção divina, não por caráter— Rodrigo Janot evidencia que Lula era a caça da Lava Jato.
São tais e tantos os procedimentos heterodoxos da turma que, como se viu, não foi difícil para uma quadrilha, em sentido literal, explorar o mercado de ilegalidades que ela promoveu.
Quem precisa de tornozeleira não é Lula, mas os senhores procuradores: a tornozeleira da Constituição.
Poderão, assim, manter-se distantes de pistolas e de quadrilheiros.
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