Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “Máximas de um País Mínimo”

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Reinaldo Azevedo

Chega de contar a história do futuro do governo Lula! Melhor o tempo presente

Cuidado para que realismo reacionário não suplante o idealismo progressista

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A única "História do Futuro" que leio com gosto é a de Padre Vieira. Logo à partida, ele observa: "Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros (...). As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento" (Nota: o sujeito de "chega" é "entendimento).

Essa obra de Vieira é uma vertigem sebastianista sobre o surgimento do Quinto Império, quando Portugal representaria, então, o sumo e o vértice da civilização. Não aconteceu, mas prefiro a imaginação que prodigaliza o triunfo àquela que barateia o caos.

Desde que Lula foi eleito, as antevisões de uma iminente derrocada tornaram-se uma rotina em boa parte da imprensa, e esta quinta, 2 de fevereiro, marca apenas o 33º dia de seu governo. Mal se desligaram as urnas do primeiro turno, e se asseverou que a futura composição do Congresso antecipava a ingovernabilidade. Com efeito, o ajuntamento de agora é o mais reacionário e ignorante da nossa história.

Lula fala durante visita ao Uruguai - Dante Fernandez-25.jan.23/AFP

Ingovernabilidade? Na quarta (1º), elegeram-se Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), hoje aliados do petista, para as respectivas presidências da Câmara e do Senado. A costura da base de apoio nesta legislatura começou ainda na passada, quando se votou a PEC da Transição. Onde muitos anteciparam o Armagedom, com a vitória dos iníquos sobre o Deus da responsabilidade fiscal, vi uma solução — dados, é claro!, "o tempo presente, os homens presentes e a vida presente". É Drummond.

Exaltei à época, nesta coluna, o feito inédito de um presidente eleito que comandava a aprovação de uma emenda à Constituição ainda na vigência do governo que acabara de derrotar. Daria ao PT as condições de interferir no comando de um futuro Congresso que, cabeça a cabeça, prometia ser hostil —e dócil não será. É uma tolice saber se será a economia ou a política a decidir o sucesso ou insucesso de Lula. Não podem ser dissociadas, e há alternância na prevalência. Às vezes, é preciso dizer: "É a política, estúpido!"

Vieira identificou o nosso apetite pela "notícia dos tempos e sucessos futuros". E sempre há quem não se faça de rogado, daí a fama dos gurus ainda hoje, invariavelmente picaretas. Então se diz: "Ah, mas os problemas de Lula começam agora..." Ousaria dizer que, em dois meses, ele viveu sucessos que valem um mandato. Enfrentou, por exemplo, uma tentativa de golpe de Estado no oitavo dia de mandato. A crise foi debelada. À esteira da barbárie, o presidente substituiu o comandante do Exército. Isso não quer dizer que o "fator militar" —ou que nome se dê à vontade de tutela— tenha desaparecido. O problema é do Brasil, não apenas do presidente. Nasceu com a República. E a resposta tem de ser nossa.

Há erros, é certo. Progressistas tendem a achar que a superioridade quase sempre verdadeira de suas escolhas morais toma o lugar dos fatos. E se descuidam do presente. É visível que o governo está, por exemplo, lidando mal com as redes sociais —e o mesmo se diga sobre o PT. Coloque-se na balança a enormidade de tudo e indaguem que lugar ocupa, na ordem das urgências, chamar impeachment de "golpe" ou fazer pouco caso da independência do Banco Central. Enquanto isso acontecia, a extrema direita estava destruindo a reputação de Pacheco e inventando Rogério Marinho como candidato viável ao Senado. E tudo poderia ter saído pelo pior.

Sei que cito bastante. É diálogo com o que se escreveu antes. Desta feita, citarei a mim mesmo. Quanto mais os democratas olharem para trás para avançar, mais os reacionários olharão para a frente para fazer a sociedade retroceder. É preciso tomar cuidado para que o idealismo progressista não seja suplantado pelo realismo reacionário. É uma lição de "A Ideologia Alemã", de Marx e Engels. Vou voltar agora ao meu Vieira e me ocupar depois do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente. Sem apocalipse.

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