Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “Máximas de um País Mínimo”

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Reinaldo Azevedo
Descrição de chapéu ataque à democracia

Uma conversa com Lula a alguns metros da tela perfurada de Di Cavalcanti

Que outros façam entrevistas melhores, com 'afetos de alegria' sem pesar

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Entrevistei nesta quinta o presidente Lula. A conversa foi ao ar, na íntegra, no mesmo dia, no programa "O É da Coisa" na BandNews FM e na BandNews TV e está no Youtube. Não vou eu comentar detalhes das respostas porque, afinal, estão disponíveis a todos, para os "afetos de alegria" e para os "afetos de tristeza", como diria um filósofo. A razão adicional para não fazê-lo também decorre do fato de que não sou repórter —e a boa reportagem será sempre o sal da terra dos jornalistas. Eu opino. E exerci o ofício no encontro com Lula —não mais do que o entrevistado.

Preço dos combustíveis? Está lá. Os dividendos pornográficos da Petrobras (com todas as vênias)? Também. Voltamos a falar sobre Banco Central e sua política celerada de juros, com o varejo na berlinda e o crédito secando —sei lá se para honra e gáudio de certos espíritos apegados às Santas Escrituras à moda Bernardo Gui, o célebre inquisidor francês que virou personagem do romance "O Nome da Rosa", de Umberto Eco. Era temido, consta, por sua competência no combate às heresias de então. É possível até que acreditasse mais da igreja do que em Deus. Decidiu a morte de muita gente.

Técnicos verificam a tela "As Mulatas", pintada em 1962 por Di Cavalcanti e que foi atacada pelos golpistas durante invasão ao Palácio do Planalto - Gabriela Biló - 9.jan.23/Folhapress

Falamos sobre a Guerra na Ucrânia, as indicações que ele tem de fazer para o Supremo e para a Procuradoria-Geral da República, a força do chamado centrão, os ministros que enfrentam acusações... E, ainda assim, faltou muita coisa em uma hora e sete minutos. Lula se preparava para o lançamento do novo Bolsa Família, duplamente remodelado: porque famílias mais numerosas receberão mais, vejam as regras, e porque 1,5 milhão de pessoas foram retiradas do programa por evidências de fraude. O desastre que tomou conta do país não poupou nem o Cadastro Único. Por onde quer que o bolsonarismo tenha passado, restou a terra crestada.

Lula afirma que a tarefa principal de seu governo —e lá vêm os "afetos de tristeza" como reação— é devolver o país à normalidade, que traz a política de volta. Por isso mesmo, este escriba não se escandaliza, e deixou isso claro, quando afirmam que Fernando Haddad teve de enfrentar Gleisi Hoffmann para conseguir reonerar a gasolina. Eu não gosto, isto sim, é quando um ministro da Economia vende a sua "recuperação em V", põe fim ao Auxílio Emergencial e, assim, "deixa a terra esfaimando". Com a concordância dos políticos.

Prefiro que as alas "econômica" e "política" se enfrentem e que aquele a quem cabe decidir —no caso, o presidente da República— o faça. Às vezes, tenho a impressão de que estamos fazendo o ninho para novos filhotes do lava-jatismo fascistoide. Seus porta-vozes já estão por aí, diga-se. Se vão prosperar de novo, não sei. Foi uma conversa cordial. Perguntei tudo o que quis no tempo que tive. Que outros, com "afetos de alegria", possam fazer ainda melhor. Acho que ganham os brasileiros e o Brasil.

Divido aqui com os leitores um momento desta quinta. Deu-se antes do meu encontro com Lula —embora transpareça na primeira pergunta que lhe fiz. E, estivesse eu sob o rigor de Bernardo Gui, talvez fosse parar da fogueira. Passei pelo Salão Nobre do Palácio do Planalto a caminho da sala da entrevista. Vi o quadro "As Mulatas", de Di Cavalcanti, danificado pelos vândalos. Restam ainda no prédio outros sinais do ataque. Senti vontade de chorar.

Estava ali o emblema dos desastres por que passou o país. E estou a cada dia mais certo de que aquele espírito ainda nos ameaça. Eu li Di Cavalcanti sendo furado de novo na nota dos empresários de Bento Gonçalves, que atribuíram o trabalho escravo nos vinhedos de nossos brindes ao Bolsa Família, aquele mesmo que Lula reinaugurou nesta quinta em novos moldes. Eu vi e ouvi qualquer noção de bem, de belo e de justo ser perfurada nas palavras do vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, que responsabilizou as próprias vítimas pelas condições de trabalho análogas à escravidão. Afinal, disse ele, são uns baianos sem qualquer compromisso com a higiene e que só pensam em bater tambor na praia.

Eu jamais vou me esquecer daquele quadro e do que senti. E agora é parte da minha memória e do meu trabalho. Como aconteceu na entrevista com Lula, um pernambucano.

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